O PAI UBU
Cavaco Silva é o
político há mais tempo em actividade em Portugal. Ministro das finanças um ano,
primeiro ministro dez anos, Cavaco é presidente desde 2006. Se não morrer nem
for interditado ou destituído até ao final do mandato, quando sair terá
completado vinte e um anos de poder.
Em 2009, em plena crise
mundial, o Partido Socialista perde a maioria absoluta e forma governo minoritário.
Cavaco, que também formou um governo sem maioria, a sua primeira experiência
enquanto chefe de governo, bem sabia quais as dificuldades que o governo iria
enfrentar, ainda para mais, num ambiente de aguda crise e forte incerteza. Não
obstante, permitiu que se formasse o governo naquelas circunstâncias, apesar de
não ignorar as consequências.
Em 2011, com o seu
beneplácito, a direita – ajudada pelo Partido Comunista e Bloco de Esquerda,
ambos sempre prontos para derrubar o PS, sejam quais forem as circunstâncias e
as consequências – derruba o governo minoritário, precipitando o país para o
resgate e o pedido de “ajuda” externa. Para Cavaco, este configurava-se como o
melhor dos cenários para exercer a sua influência e acabar em grande a sua
carreira política: Uma maioria de direita sob a sua égide, a canga do programa
de resgate desenhado pelos seus ídolos, o FMI e os eurocratas de Bruxelas,
aposto sobre o governo, enfim, as condicionantes de um “programa de governo” externo
que iria colocar o país no rumo certo: o seu rumo.
Porém, nestes planos de
mentes brilhantes, há sempre algo que não corre bem. No caso, a confrangedora
falta de liderança, inteligência e preparação do Primeiro Ministro Passos
Coelho que, sem saber governar, entregou as rédeas do poder a um taliban da
contabilidade, um lunático da austeridade chamado Vítor Gaspar. Este actuou
como uma espécie de Joseph Mengele das finanças: Uma vez na posse do poder, deu
largas à sua perversidade, fazendo experiências pseudocientíficas com a
economia e o povo português, infligindo a este último, estúpidos e inúteis
sacrifícios com gravíssimas consequências para o presente e o futuro.
Dois anos depois,
Gaspar, exaurido pelos consecutivos falhanços, dorido de tanto chocar com a
realidade e sem margem de manobra para continuar a sua sádica política,
retira-se, não, sem antes, confessar que falhou. Que faz Passos? Sabendo com
antecedência que é preciso arranjar um substituo para Gaspar, o primeiro ministro
faz subir a secretária de Estado do Tesouro à cúpula das finanças. Justificação:
É a pessoa ideal para dar continuidade à política de Gaspar, ou seja, insiste
obtusamente no erro.
Entretanto, Portas, sob
Gaspar, foi humilhado e ofendido, engoliu sapos, rãs, cobras, lagartos e toda a
sorte de animais peçonhentos, participando num governo do qual diria o que
Maomé não diz do toucinho, se estivesse na oposição, já que a política do
governo a que pertence representa tudo o que o CDS rejeita. Mas Portas aguentou
como um mártir da fé, tudo sempre em nome da sacra estabilidade, e para que se
evitasse um segundo resgate, e já agora à espera de uma oportunidade. E esta
acaba por surgir. Uma vez livre de Gaspar, julgou chegar a hora de inverter a
política do governo. Porém, apanhado de surpresa pela escolha de Albuquerque
para as finanças, entendeu não ter espaço no governo e demitiu-se. A demissão
de Portas deve-se, pois, estritamente a razões políticas: Não quero Gaspar
porque a sua política é errada, ainda que tenha que o suportar em nome da
estabilidade; Sai Gaspar, então surge a oportunidade de mudar de política; Entra
Albuquerque, então a política é para manter; Se a política é para manter, então
saio eu, porque sou contra a política seguida e não quero que ela continue.
Até aqui, assistimos a
um drama mais ou menos canónico. Porém, surge então o absurdo: Passos, aterrado
com o segundo resgate à porta, impede Portas de se demitir e, qual vítima de
assalto à mão armada, dá tudo o que este quer. Afinal, se antes tinha entregue
o poder a Gaspar, porque não entregá-lo agora a Portas? De qualquer modo, não
seria ele a governar, já que não imagina o que isso seja. O seu cargo é o de
“primeiro ministro não executivo”.
Muito se tem dito de
Portas. Troca tintas, salta pocinhas, homem sem palavra, etc. A nosso ver, a
análise não pode incidir na personalidade, mas na política. Por mais escroque
que possa ser enquanto personalidade, Portas é um animal político e é nessa perspectiva que o analisamos.
Ora, Portas volta atrás
na palavra, não porque choramingou um pouco mais por poder mas porque – na sua
óptica – consegue aquilo que queria: Mudar a política do governo. E é por isso
que a sua demissão deixa de fazer sentido. Senão, vejamos: Retira às finanças a
negociação com a Troika, avocando-a para si, enquanto vice-primeiro ministro;
Faz subir o ministro da economia a ministro de estado, equiparado, portanto, à
ministra das finanças; Fica com a coordenação da economia, ou seja, em caso de
empate entre a economia e as finanças, é ele a desempatar, e desempatará para o
lado da economia.
Deixemos de lado
considerações futuras sobre as relações de confiança entre o vice e o primeiro
ministro, se esta alteração de política seria exequível, se Portas teria
capacidade de levar o barco a bom porto, se teria capacidade para negociar com
a Troika, etc. A vitória de Portas na negociação configura, na realidade, uma
inversão na política do governo.
Após uma semana frenética
de negociações, Passos vai várias vezes a Belém e anuncia, no sábado, uma
solução para a crise política. Cavaco não só não pode alegar desconhecimento
sobre as negociações, como esteve profunda e decisivamente envolvido nelas.
Quarta feira, o presidente
fala ao país. Todos esperam que, com maior ou menor relutância, aceite a
proposta de Passos, até porque não se avistam no horizonte outras alternativas,
avesso que é às eleições antecipadas. No entanto, em vez de resolver a crise
política, o presidente prolonga-a e agudiza-a, fazendo o oposto do que são os
seus deveres constitucionais. E que diz Cavaco? Três coisas.
Primeira: Ao não
mencionar sequer a demissão de Portas, a não aceitação dessa demissão por
Passos, as negociações entre ambos e finalmente a solução que lhe foi
apresentada, Cavaco rejeita liminarmente a proposta da coligação como se esta
nunca tivesse existido. A proposta de remodelação não foi sequer considerada
como uma das soluções plausíveis para resolver a crise política.
Segunda: Com o habitual
chorrilho de asneiras, lugares comuns e mentiras como justificações,
(ressalve-se a única justificação atendível, a do orçamento para 2014), Cavaco
rejeita antecipar as eleições para Setembro deste ano, mas, surpresa, propõe a
antecipação para Junho de 2014, ou seja, quer fazer coincidir o fim da
legislatura com o fim do programa de “ajuda”, de modo a que se abra um novo
ciclo político com o início do período “pós Troika”. Sem satisfazer nenhum
pedido nesse sentido, Cavaco aceita antecipar as eleições, discordando apenas
do timing das oposições.
Terceira: Contra aquilo
que constitui o cerne da sua doutrina da interpretação que faz dos seus poderes
constitucionais, Cavaco convoca os três partidos que assinaram o resgate e
exige que se entendam, não só até ao termo da agora abreviada legislatura, mas
também para futuro, o tal futuro “pós Troika” que, para o homem de Boliqueime,
em nada se distinguirá do presente, salvo o acesso aos “mercados”. Esta
esdrúxula aliança seria mediada por uma “personalidade” e os partidos terão que
se pôr de acordo “rapidamente”.
O país ficou aturdido.
Que quer o homem dizer com isto?
Em primeiro lugar, ao
recusar a proposta de Portas/Passos, o presidente contradiz-se com toda a sua
anterior e reiterada prática. Ainda na semana precedente, o presidente disse
alto e bom som que o governo depende da Assembleia e não dele. Ora, como
compaginar esta estreita visão constitucional das suas responsabilidades com a
recusa de uma solução de governabilidade saída do quadro parlamentar e, por
conseguinte, da maioria existente?
Duas interpretações:
Cavaco é malino, mesquinho, vingativo. Não perdoa a Portas ferroadas do passado
e aproveita agora o ensejo para servir fria a vingança, atribuindo à jogada
deste uma vitória de Pirro. Ganhando a negociação, Portas fica a arfar à porta
do ministério como ex-quase-vice-primeiro-ministro, cortesia do maquiavélico algarvio.
Esta argumentação é fácil e sedutora, porém, inconsequente.
A apreciação do
presidente, a nosso ver, é política. Dar o aval à solução apresentada pela
coligação seria aprovar a inflexão na política do governo, aprovar o endurecer
no tom com a Troika, (mesmo que tal nunca viesse, como não virá, a acontecer)
porventura “flexibilizar” a aplicação do programa, no limite, abrir a porta à
renegociação, o que seria uma heresia, deixar enfim o registo do “bom aluno”. E
é isso que Cavaco rejeita ao rejeitar o plano Portas/Passos.
Em segundo lugar, ao
convocar – ainda que condicionalmente – eleições para Junho de 2014, Cavaco
demite de facto o governo, deixando-o
em gestão corrente, apesar de realçar contraditóriamente que este se mantém em
“plenitude de funções”. Mas, que plenitude é esta, quando o governo não vê
sequer aprovado pelo presidente a remodelação que propôs? Com que autoridade e
força políticas é que pode implementar as medidas que propõe ao país? Ninguém o
levará a sério. Estando a prazo, o tempo corre contra o governo e a favor de
quem este pretende despedir ou prejudicar. Basta fazer de Penélope e desfazer
de noite o que se fez de dia, esperando pacientemente o exitus do governo, tarefa em que, por exemplo, a nossa
administração pública revela uma refinada competência. Esta demissão eleva o
problema da credibilidade do governo a um novo patamar; Já não se trata de
acreditar ou não que o governo seja capaz de levar a cabo as suas políticas,
trata-se de não acreditar que o governo esteja ao menos em funções.
A consequência desta
demissão de facto é grave: Prolonga a
agonia do governo e torna a crise política num dado permanente até Junho de
2014. Ora, o governo esteve em gestão desde a TSU até à decisão do TC, isto é,
de Setembro de 2012 até Março de 2013. Agora, entra novamente em gestão de
Julho deste ano até Junho do próximo. Claro está que, fosse outro o primeiro
ministro, e a sua demissão já teria sido apresentada. Mas não é. Para quem se
arroga ser o arauto da estabilidade, Cavaco lança o país na lama durante um
ano.
Em terceiro lugar, a “santa aliança” exigida aos partidos em nome
da putativa “salvação nacional” acaba por ser uma proposta, no mínimo, cretina,
já que o presidente tem por certa a não participação do PS num governo que não
saia de eleições. Resta, pois, que esta fórmula se resuma a um “pacto de
regime” que, como todos os que o precederam, se esgota no seu anúncio. A
pretensão de Cavaco é, também ela, política; com esta aliança, o objectivo é
tornar irrelevante o resultado eleitoral. Seja qual for o desfecho das
eleições, os três partidos estarão amarrados ao pacto “pós Troika” e as
políticas terão que prosseguir como se o povo não se tivesse pronunciado.
Chumbada a imposição da
“salvação nacional”, o presidente, sibilino, deixa antever que existem outras
soluções jurídico-constitucionais. Quais sejam, não disse. Não é, no entanto,
difícil adivinhar:
a) Mantém o governo a
todo o custo e recusa obstinadamente qualquer demissão até Junho de 2014 (ordem
a que Passos obedecerá) ou
b) demite o governo e
convoca eleições assim que o orçamento para 2014 estiver aprovado e pronto para
entrar em vigor (ou seja, demite o governo em Novembro ou em Dezembro)
convocando então eleições para Fevereiro ou Março.
Remota ainda é a
hipótese de demitir já o governo (vendo-se livre de Portas) e adoptar uma
solução do tipo Mário Monti, isto é, manda formar um governo presidido por uma “personalidade” da sua
inteira confiança (Manuela Ferreira Leite, sua lugar-tenente? Lobo Antunes, seu
mandatário?) que tenha por objectivo o cumprimento de serviços mínimos.
Limitar-se a passar os dois exames da Troika que faltam e elaborar o orçamento,
mesmo sabendo que este pode chumbar. Depois, eleições, ainda antes de Junho.
Há ainda uma hipótese
que Cavaco não representa como possível, mas que poderá ser a resposta de
Portas: A demissão e abandono imediato deste e da coligação e até,
eventualmente, uma moção de censura apresentada pelo CDS que forçará, sem apelo
nem agravo, a dissolução imediata do parlamento. Rebuscada? Sim. Mas
acreditamos que Portas ainda não teve a última palavra. E dele há que esperar o
inesperado.
A solução da “salvação
nacional” é, pois, uma falsa solução que não resolve, antes agudiza e prolonga
a crise política. É que o presidente não tem consciência do perigo que esta
“solução” representa para o regime democrático.
Falhando, como, com toda a probabilidade, falhará o programa de
”ajustamento”, os três partidos – PS incluído – estariam associados ao falhanço
que é essencialmente do governo e da política de Gaspar. Em quem votariam os
portugueses, designadamente aqueles que, não sendo comunistas nem bloquistas,
rejeitam a “ajuda” dos nossos amigos de Peniche europeus? Pode o país dar-se ao
luxo, nesta hora grave, de ter 60 ou 70% de abstenções?
Deixando para os dois partidos à esquerda do PS as despesas da
oposição, reuniriam estes, naturalmente toda a fúria daqueles que perderam o
emprego e as empresas e a vida que tinham por causa do governo. Pode o país
dar-se ao luxo de ter na próxima AR 60 ou 70 deputados que são sempre parte do
problema e nunca da solução, pois recusam sempre qualquer entendimento que
resulte em responsabilidade?
Finalmente, não será
este cenário eleitoral pasto fácil para demagogos mais ou menos fascistas que
empunhem a bandeira do “político que é contra os políticos” e do “partido que é
contra os partidos”? Já tivemos um homem muito sério que nos veio endireitar
durante quarenta anos. Chegou e sobrou. É este o entendimento que Cavaco tem da
democracia.
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