terça-feira, 9 de julho de 2013

Da Europa


Conclui-se o panfleto "Do estado das coisas" com o capítulo 7, dedicado à Europa.

Primeira parte


Cerimónia de assinatura da adesão à CEE em 1985.


CAPÍTULO 7
DA EUROPA

    Em 1986, o país rejubilou. Entrámos na Europa! Era o nosso novo desígnio nacional! Vinte e cinco anos depois, o contentamento parolo deu lugar a uma profunda desilusão. A Europa, afinal, não é o que parecia ser. Antes, porém, as ajudas recebidas nos anos oitenta sustentaram um crescimento contínuo e – supunham os sábios da economia – perpétuo e imparável. Eram os dias da tese da “convergência”, que se enunciava sensivelmente assim: Se a nossa taxa de crescimento for superior à média da taxa europeia, estaremos a convergir e, por conseguinte a “aproximar” dos padrões de conforto e de qualidade de vida dos nossos parceiros. Era o tempo em que se achava (e muitos ainda acham) que o crescimento conduz ao desenvolvimento. O que aconteceu às toneladas de dinheiro enviadas pela Europa, todos sabem e já aludimos a esse modelo estafado de crescimento. Engordaram os bancos, engordaram as empresas de construção, os conversores de terrenos agrícolas em urbanos, sem esquecer as tais empresas criadas à medida (as tais que invariavelmente pertencem à prima, ao sobrinho, ao cunhado, à nora dos políticos profissionais) que fizeram os estudos, os pareceres, as assessorias, as formações, etc. Pese embora um inegável desenvolvimento, os recursos poderiam e deveriam ter sido muito mais bem empregues. Porém, de nada vale chorar sobre leite derramado. Adiante.
    A verdade é que, para o bem e para o mal, estamos casados com a Europa. E esta está a desagregar-se perante os nossos olhos. O que é um perigo. Sempre que as nações do velho continente estiveram unidas – de livre vontade ou à força – houve paz. Sempre que cada um tentou tratar de si, a Europa, mais cedo ou mais tarde, resvalou para a guerra. E como sabemos nós, europeus, guerrear, pois não fizemos outra coisa, com alguns intervalos, é certo, nos últimos três mil anos.
    Estamos, pois, amarrados à Europa. Mais do que à UE, estamos amarrados ao Euro, a moeda “única”. Por isso, dizem-nos, temos que acatar as decisões de Bruxelas, senão teremos que sair do Euro. Mas, permitam duas perguntas: Em que consistem as políticas europeias? E em que consiste o Euro?

    AS POLÍTICAS EUROPEIAS

    Podíamos ilustrar as políticas europeias percorrendo o calendário de uma semana, já que todas são iguais.
    Segunda feira: Os mercados estão nervosos devido à indefinição vinda de Bruxelas e as incertezas quanto ao futuro da moeda única. O Euro desvaloriza, os juros sobem e as bolsas caem.
    Terça feira: Um qualquer mangas de alpaca da Comissão Europeia ou do Eurogrupo (uma espécie de “Conselho de Ministros” da zona Euro) vem à imprensa dizer uma qualquer banalidade do tipo: “A Europa tudo fará para proteger o Euro” ou “Tomaremos todas as medidas necessárias para preservar a moeda única”. Os mercados reagem a estas ou outras baboseiras ocas e o Euro sobe, os juros baixam e as bolsas ficam em alta.
    Quarta feira: São divulgados alguns das várias centenas de indicadores económicos, cuja importância isolada é absolutamente inconsequente, mas que causam impacto nos noticiários. Esses indicadores são invariavelmente negativos e atingem particularmente um determinado país da zona Euro. Os mercados reagem. O Euro desce, os juros sobem, a Bolsa afunda.
    Quinta feira: O governo do país particularmente atingido pela divulgação dos indicadores económicos negativos reúne-se de emergência e, depois de conferenciar com Bruxelas e Berlim, faz o anúncio formal de que vai implementar um ambicioso programa de “Reformas Estruturais” e tomar medidas para “Disciplinar as contas públicas”. Este programa implica o aumento de impostos, cortes e austeridade. Um badameco em Bruxelas diz com ar de contentamento que o governo vai “na direcção certa” e outros chefes de governo aplaudem as “medidas corajosas”. A Bolsa fica em alta, o Euro valoriza e os juros caem.
    Sexta feira: Num blogue, jornal ou canal de televisão, alguém diz ou escreve que o rei vai nu. As “reformas estruturais” não são reformas nem são estruturais porquanto apenas se limitam a cortar serviços públicos, salários e pensões, bem como a aumentar impostos, e alerta-se para a espiral recessiva concluindo que assim não vamos lá. Os mercados ficam deprimidos, a Bolsa cai, o Euro desvaloriza e os juros sobem. Depois, voltamos à segunda feira e o ciclo repete-se até à náusea.  
      Andamos neste carrossel desde, pelo menos, 2008, o ano em que o céu nos caiu na cabeça, como diriam os gauleses. Porque é tão indefinida (ou ausente) a política europeia? Será que as pessoas que estão à frente das instituições europeias ou os seus chefes de governo não sabem o que andam a fazer?
    Seria fácil respondermos afirmativamente à ultima pergunta e, de facto, as estupidezes verborreiadas pelas instâncias europeias são tantas e tão constantes, que é grande, a tentação de pensarmos que afinal somos governados por um renque de mentecaptos. Porém, como em tudo na vida, as coisas não são tão simples como parecem, e a resposta é um pouco mais complexa. A Europa não faz política porque não tem meios para a fazer.

    BREVE HISTÓRIA DA EUROPA UNIDA

    A guerra de 1939-1945, devastou o continente. Mais de quarenta milhões de pessoas morreram na Europa, entre elas, mais população civil do que militar, vítimas de bombardeamentos, ocupação, repressão, fome, doenças, deportações, limpezas étnicas e assassínios em massa. Dezenas de milhões de feridos e incapacitados, de órfãos, viúvas e viúvos, milhões de vidas suprimidas ou alteradas para sempre pelo curso da Guerra.
    A Alemanha foi dividida e ocupada e cerca de um terço do seu território perdido para os países vencedores, o que levou a uma imigração forçada de cerca de quinze milhões de pessoas. Outros territórios sofreram um rearranjo de fronteiras no centro e leste da Europa e também mudaram de mãos, e outros tantos milhões de refugiados polacos, russos, ucranianos, romenos, húngaros e eslovacos foram deportados e andaram com os seus poucos haveres às costas de país para país.
    As infraestruturas e as cidades foram quase completamente destruídas. A indústria (que havia sido convertida em indústria de guerra) dizimada. A agricultura, mercê das sortes da guerra, abandonada. A paz tinha sido conseguida à custa de um preço elevadíssimo, demasiado elevado para que alguma vez os europeus pensassem sequer em ser possível voltar a repetir semelhante catástrofe no continente. Era preciso enterrar definitivamente as causas das desavenças do passado. E entre estas, avultava desde logo a histórica rivalidade entre a França e a Alemanha e as rivalidades entre praticamente todos os países europeus. A história havia ensinado que os aliados de hoje bem poderiam ser os inimigos de amanhã. A acrescentar a esta necessidade de união para prevenir futuras guerras, estava em curso outra guerra, felizmente fria, fruto da ocupação soviética da Europa oriental. Todos estes condicionalismos não só convidaram, mas também forçaram a um entendimento doravante diferente entre os antigos beligerantes.
    A construção da Europa Unida deu-se em diversas fases. A primeira, a união franco-alemã para o carvão e o aço em 1951. Depois, a criação da comunidade económica europeia, em Roma, que juntava àqueles dois países, a Itália e os três países do Benelux, Holanda, Bélgica e Luxemburgo, em 1957. Em 1973, mais três países se juntam à CEE: A Dinamarca e os dois estados das ilhas britânicas, Irlanda e Reino Unido. Em 1981 é a vez da Grécia, livre da ditadura, se tornar o décimo membro. Cinco anos depois, os dois estados ibéricos, Portugal e Espanha, ambos, como a Grécia, finalmente livres de ditaduras, juntam-se à Europa. Por 1992, alteram-se as regras de funcionamento e até o nome, que passa para UE: União Europeia, significando esta mudança, também uma vontade de integração que não se ficasse apenas pelos aspectos económicos. Em 1995, novo alargamento, com a Finlândia, a Suécia e a Áustria. Finalmente, em 2004, dá-se a maior adesão: dez países, entre os quais as antigas repúblicas soviéticas do Báltico, Letónia, Lituânia e Estónia, bem como outros países que se libertaram do jugo comunista na sequência das revoluções de 1989-1990 que se seguiram ao desmoronar do império soviético: Hungria, Polónia, República Checa, Eslováquia (estes dois países, na sequência da secessão deste último e consequente fim da Checoslováquia) e a Eslovénia, a única ex-república Jugoslava a juntar-se até então à UE. Aderiram também dois minúsculos países-ilha do Mediterrâneo: Malta e Chipre. Já depois deste alargamento, em 2007, outros dois países da Europa Oriental, Bulgária e Roménia, tornaram-se membros, elevando deste modo o número de países para 27 e uma área geográfica que vai do Mar do Norte ao Mediterrâneo Oriental, do Báltico ao Oceano Atlântico e do Círculo Polar Àrtico ao Estreito de Gibraltar, às portas de África. Recentemente, foi a vez da Croácia, outra ex-república jugoslava, se juntar à UE.
  
    As teses da construção europeia.

    Durante este percurso, a união foi sendo construída mediante um processo moroso de avanços e recuos. Desde o início, duas teses subjazem à construção europeia: A tese institucional e a tese federalista.

    A construção por via institucional.

    Esta tese é mais cara aos partidos e governos oriundos da direita ou dos sectores conservadores. Parte do pressuposto que a união é um work in progress, ou seja, é algo necessariamente moroso e que inevitavelmente durará gerações. A integração e união das políticas deve fazer-se mediante pequenos passos muito bem estudados. E a evolução deve ser quase imperceptível, lenta, mas segura. No fundo, os estados deverão conservar a sua independência, sendo a União, um conjunto de entendimentos que revestem a forma jurídica de tratados, pelo quais os estados aceitam no seu próprio interesse, ceder um pouco da sua soberania para poderem ter um pouco de soberania partilhada nas instâncias europeias. A união resume-se a um conjunto de mecanismos que permite a obtenção de economias de escala, o levantar lento mas progressivo de barreiras à livre circulação de capitais, bens, serviços e pessoas. No fim de contas, para os partidários desta tese, a união consiste num conjunto de vantagens que cada país, no seu próprio interesse egoístico, goza, a troco da cedência de um pouco de soberania, mas apenas a necessária e suficiente para assegurar as referidas vantagens. Uma união política plena está completamente fora de questão. Cada país deve conservar as suas idiossincrasias. Será cada um por si, excepto nos casos em que é no melhor interesse de cada um ceder um pouco para obter as tais vantagens comparativas com essa cedência. 

    A tese federalista.

    Esta tese vem sendo defendida pelos governos e partidos mais liberais ou mais à esquerda. Sendo uma tese mais voluntarista, pretende que a Europa, enquanto entidade a se, é superior, ou antes, tem um valor superior à mera soma dos seus estados membros. Assume que os europeus, pese embora toda a sua diversidade, possuem uma identidade própria. Aliás, entende que a essa diversidade de culturas representa uma das suas riquezas e não um obstáculo à concretização da união. Para alcançar este objectivo, pretendem os federalistas uma integração mais plena e mais rápida das políticas europeias. Entendem também que a Europa social, das pessoas, deve sobrepor-se à Europa económica ou dos negócios. A Europa deve ser uma assunto dos europeus e não dos governos europeus. As instituições europeias devem representar, tanto quanto possível, os povos da Europa, mais do que as suas instituições nacionais.
    A crescente integração de normas e políticas deve ter, como corolário lógico, a formação de uma Europa com órgãos de governo próprios, distintos dos governos nacionais. No futuro, haverá uma federação ou confederação de estados, os “Estados Unidos da Europa”

    Em que ponto estamos, no que diz respeito à construção europeia?



Sede da Comissão Europeia, Bruxelas.

    Para responder a esta pergunta, desviemo-nos um pouco e atentemos no edifício constitucional construído pelos nossos primogénitos, os Estados Unidos da América.
    A constituição americana, pese embora o facto de ser anterior à revolução francesa, é, como sabemos, tributária das ideias iluministas e da sede de liberdade e libertação do ancien regime que estiveram na base daquela que foi a revolução das revoluções e que marca o advento da modernidade. Assim, serão benéficos os frutos que recolhermos com a experiência dos nossos primos do outro lado do atlântico.
    Os Estados Unidos são uma república federal. Cada estado possui os seus órgãos próprios de poder. O poder executivo é exercido pelo governador, directamente eleito e cujo poder é independente do poder legislativo (ou seja, este não tem o poder de o fazer cair politicamente, tendo apenas o poder de o destituir, mas só em casos muito excepcionais). Este governador tem uma administração com vários membros, numa estrutura que podíamos comparar a um primeiro ministro e um governo, respectivamente. Este poder executivo é escrutinado por um parlamento com duas câmaras que exerce o poder legislativo, o Senado, cujos membros são eleitos segundo um princípio de universalidade, e a Câmara dos representantes, uma espécie de “Câmara Baixa” (por oposição à “Câmara alta” que será o Senado), cujos membros são eleitos segundo um princípio de proporcionalidade. Cada estado possui também a sua própria constituição e os seus próprios órgãos judiciais, incluindo um Supremo Tribunal.
    Acima dos estados e dos seus órgãos de poder, a Federação tem os seus poderes – os poderes federais, constitucionalmente atribuídos - que são exercidos em todo o território e se sobrepõem aos poderes estaduais. Como sabemos, o poder executivo é exercido pelo presidente, cuja eleição resulta das 50 eleições estaduais, que forma uma administração ou governo, diríamos nós em termos europeus. A administração é escrutinada pelo Congresso, que alberga duas câmaras, tal como os parlamentos estaduais. O Senado é a mais importante e cada estado elege dois senadores, seja a California, seja o Wyoming. Subjaz aqui, pois um princípio de universalidade no que à eleição do senado diz respeito. Todos os estados são iguais entre si em dignidade e direitos, independentemente da extensão do seu território, do número da sua população ou da importância da sua economia, pelo que cada um é representado por dois senadores por igual. Já na Câmara dos Representantes, os congressistas são eleitos segundo a representação populacional, ou seja, os estados mais populosos fazem eleger mais congressistas do que aqueles que têm menos eleitores. Há, pois, um compromisso entre a representação estadual (dois senadores por cada estado, grande ou pequeno) e a representação eleitoral (mais eleitores, mais representantes).
    Já na União Europeia, são completamente diferentes – porque diferentes são os pressupostos – os órgãos de poder.
    Aparte o Tribunal Europeu, os órgão políticos são o Parlamento Europeu, a Comissão Europeia e o Conselho Europeu.
    O Parlamento Europeu tem os seus membros eleitos por estado, cabendo a estes um número variável de deputados, de acordo com a sua demografia, ou seja, há aqui um princípio de proporcionalidade. Porém, os deputados candidatam-se em listas de partidos nacionais, e não europeus. Depois de eleitos, por uma razão de afinidade, agrupam-se em partidos europeus (que na verdade não existem enquanto tal). O Parlamento Europeu tem hoje mais poderes que inicialmente, mas está muito longe da importância, quer dos parlamentos nacionais, quer do Congresso americano. Para não dizer que a sua actividade é residual, diremos que, no máximo, é muito limitada. A sua escassez de poderes não tem correspondência com a sua representatividade.
    O órgão executivo é a Comissão Europeia, que executa as suas próprias directivas, mas que executa também as directivas do Conselho Europeu e implementa as decisões do Parlamento. À frente da Comissão está o Comissário Europeu, ou presidente da CE, que é uma personalidade escolhida pelo Conselho Europeu. Este, ao contrário do que sucede com qualquer Presidente ou Primeiro Ministro (consoante estejamos perante uma democracia presidencialista ou parlamentar) não é livre de escolher o seu elenco governativo baseado naqueles que são os dois princípios que devem nortear essa escolha: competência técnica e solidariedade política. Os membros da Comissão são designados pelos governos nacionais, e estes têm mais ou menos comissários, consoante a sua demografia. Em tese, o pobre Comissário pode vir a presidir a uma Comissão que tem no seu elenco simultâneamente comissários comunistas e neonazis! De ordinário, convivem no mesmo elenco, liberais, sociais democratas, conservadores, verdes/ecologistas e democratas-cristãos, ou quaisquer outras ideologias, consoante a orientação política dos governos nacionais que são quem os designa. A composição da Comissão é assim imposta pelos governos dos estados. É como se o Presidente dos EUA tivesse que ter no governo um secretário do Departamento de Estado designado pela Califórnia, um secretário de estado do tesouro imposto pelo Illinois, um secretário de estado do comércio indicado pela Florida, etc. Um outro aspecto relevante prende-se com a preocupação de fazer prevalecer o princípio da proporcionalidade num órgão desta natureza. Os países com mais população têm mais comissários e os menos populosos, menos. Mas, como o órgão, ao contrário do Parlamento, tem um número limitado de membros, esta proporcionalidade resulta distorcida. A solução encontrada para matizar este problema tem sido a criação de comissões (pastas ou ministérios, diríamos, se nos estivéssemos a referir a governos nacionais), para encaixar tanto comissário, mas a verdade é que, por um lado, muitas dessas comissões são redundantes e, por outro, as comissões “importantes” são invariavelmente cometidas aos comissários dos países dominantes.  
    Finalmente, o órgão mais importante é o Conselho Europeu. Este é composto pelos chefes de estado e de governo dos estados membros, que são, por conseguinte, pelo facto de serem Presidentes (nas democracias presidencialistas) ou Primeiros Ministros (nas democracias de tipo parlamentar), membros por inerência deste órgão. Inicialmente, o Conselho reunia a cada presidência da União, que é rotativa e dura seis meses, ou seja reunia duas vezes por ano. Ultimamente, e mercê da crise, reúne mais amiúde. Entre reuniões ou cimeiras, existem várias comissões permanentes compostas por funcionários que asseguram as negociações que precedem a próxima cimeira e a implementação das medidas tomadas na cimeira precedente. Ao contrário do que sucede na América, na Europa não há um presidente, ou antes, um órgão eleito para exercer o poder executivo. Será que poderíamos imaginar os EUA governados por um “conselho de governadores”, com os estados mais populosos e economicamente importantes a ditar a sua vontade, em vez da administração? Pois é exactamente o que sucede na Europa.
    Em suma, os traços distintivos dos órgãos de poder europeus são os seguintes:
    Dos três, apenas o Parlamento é eleito por sufrágio directo, e ainda assim em listas nacionais e não europeias, sendo este, dos três órgãos o que notoriamente tem menos poder.
    A Comissão Europeia é constituída por funcionários nomeados. O Presidente é um funcionário nomeado pelo Conselho, ao passo que os outros comissários são nomeados pelos respectivos governos nacionais. Muito embora já haja um órgão em que os membros são eleitos segundo um princípio de proporcionalidade, o Parlamento, este mesmo princípio é, ainda que de um modo altamente distorcido, observado na Comissão. Este órgão, sendo executivo, acaba por ser a longa manu do Conselho, já que os poderes de escrutínio por parte do Parlamento são muito reduzidos ou ineficazes.
    O Conselho Europeu é o órgão máximo, o que significa que, na arquitectura constitucional da União Europeia, reina o primado dos poderes nacionais sobre a Europa. Nenhum dos membros do Conselho é eleito para a função, todos são membros por inerência. Temos que recuar mais de dois mil anos para encontrar um órgão de poder com tantas e tão importantes competências em que nenhum membro é eleito por sufrágio: O Senado Romano, a quem pertenciam, por inerência, os pater familias das famílias patrícias de Roma. Neste órgão, vale o princípio da universalidade, isto é, um país, um representante. Porém, bem sabemos que a tomada de decisões não é um processo em que a negociação e o compromisso prevaleçam sobre os interesses nacionais. Pelo contrário, para cada cimeira, os chefes de estado e de governo vão defender os “interesses nacionais”, ou seja, vão a cada cimeira tentar receber mais do que aquilo que tiverem que dar.
    As decisões do Conselho, nos últimos anos, têm-se caracterizado por duas constantes: Ou são “não decisões” por puro tacitismo político, seja porque num determinado país vão ocorrer eleições gerais, ou há um referendo à porta, ou eleições regionais daí por um par de meses, ou são decisões invariavelmente impostas por um número muito reduzido de países e acatadas pelos outros, regra geral, impostas pela Alemanha, o país mais populoso e economicamente mais forte, e apoiadas pela França e pelos países do “norte” (Benelux e Escandinávia), com o Reino Unido sistematicamente de fora (como se de um não membro ou mero membro observador se tratasse).
    Temos assim uma contradição insanável entre a democracia e os poderes de representação. Só estados em que vigorem regimes democráticos é que podem aderir à União. Porém, dos três órgãos de poder, apenas um é eleito (e logo aquele que tem, de longe, menos poder), o segundo é composto por membros por inerência, e o terceiro é constituído por funcionários escolhidos pelos membros do segundo. São os governos nacionais, e não um “governo europeu”, quem manda na União. O poder não é democrático, ou seja, a composição dos órgãos, à excepção do Parlamento, resulta de uma democraticidade indirecta ou reflexa, sendo certo que um dos órgãos é que nomeia o outro. À legitimidade democrática directa, que é apanágio de qualquer democracia, a União contrapõe a não democracia europeia, um corpo de funcionários nomeados, os “Sir Humphreys” de Bruxelas (lembram-se das famosas séries “Sim, senhor Ministro” e “Sim, senhor Primeiro Ministro” em que o funcionário, Sir Humphrey dava sempre a volta ao ministro/primeiro ministro e levava sempre a água ao seu moinho?).
    Ausência de representação, falta de legitimidade, opacidade, receio da soberania popular, auto legitimação, exército de funcionários que obedecem naturalmente a quem os nomeia e que exercem um enorme poder sem qualquer legitimidade, nem responsabilização nem escrutínio. Eis a razão do impasse e da decadência da União Europeia e a razão pela qual os europeus não se revêm na sua Europa.
    Alguns dirão: Mas a Europa não é uma federação, ainda não é uma federação; é natural que sejam os estados a mandar. A esses respondemos: a Europa já é uma federação; apenas não tem os instrumentos constitucionais adequados à sua realidade. E formar esses instrumentos pressupõe, em primeiro lugar, possuir a inteligência e a visão necessárias para o reconhecer e reconhecer que sem eles a Europa definha e desaparece. Em segundo lugar, vontade política para dar esses passos, e em terceiro lugar, coragem para o fazer, sem medo dos povos, sem medo da democracia. Ora, se é certo, como já alguém disse, que vivemos a pior crise dos últimos oitenta anos, não é menos certo que por grande azar logo nos calharam os piores líderes dos últimos sessenta anos! (Não digo dos últimos oitenta, porque isso significaria que os actuais seriam piores do que Hitler, Mussolini, Franco ou Salazar, para nomear apenas alguns, o que, para já, ainda não é verdade). A liderança europeia (ou a  ausência dela) é fraca, medíocre, mesquinha, néscia, falha de visão, coragem e atitude. É o oposto do que necessitamos para os conturbados tempos em que vivemos.


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