Conclui-se o panfleto "Do estado das coisas" com o capítulo 7, dedicado à Europa.
Primeira parte
Cerimónia de assinatura da adesão à CEE em 1985.
CAPÍTULO 7
DA EUROPA
Em 1986, o país
rejubilou. Entrámos na Europa! Era o nosso novo desígnio nacional! Vinte e
cinco anos depois, o contentamento parolo deu lugar a uma profunda desilusão. A
Europa, afinal, não é o que parecia ser. Antes, porém, as ajudas recebidas nos
anos oitenta sustentaram um crescimento contínuo e – supunham os sábios da
economia – perpétuo e imparável. Eram os dias da tese da “convergência”, que se
enunciava sensivelmente assim: Se a nossa taxa de crescimento for superior à média
da taxa europeia, estaremos a convergir e, por conseguinte a “aproximar” dos
padrões de conforto e de qualidade de vida dos nossos parceiros. Era o tempo em
que se achava (e muitos ainda acham) que o crescimento conduz ao
desenvolvimento. O que aconteceu às toneladas de dinheiro enviadas pela Europa,
todos sabem e já aludimos a esse modelo estafado de crescimento. Engordaram os
bancos, engordaram as empresas de construção, os conversores de terrenos
agrícolas em urbanos, sem esquecer as tais empresas criadas à medida (as tais
que invariavelmente pertencem à prima, ao sobrinho, ao cunhado, à nora dos
políticos profissionais) que fizeram os estudos, os pareceres, as assessorias,
as formações, etc. Pese embora um inegável desenvolvimento, os recursos poderiam
e deveriam ter sido muito mais bem empregues. Porém, de nada vale chorar sobre
leite derramado. Adiante.
A verdade é que, para o
bem e para o mal, estamos casados com a Europa. E esta está a desagregar-se
perante os nossos olhos. O que é um perigo. Sempre que as nações do velho
continente estiveram unidas – de livre vontade ou à força – houve paz. Sempre
que cada um tentou tratar de si, a Europa, mais cedo ou mais tarde, resvalou
para a guerra. E como sabemos nós, europeus, guerrear, pois não fizemos outra
coisa, com alguns intervalos, é certo, nos últimos três mil anos.
Estamos, pois,
amarrados à Europa. Mais do que à UE, estamos amarrados ao Euro, a moeda
“única”. Por isso, dizem-nos, temos que acatar as decisões de Bruxelas, senão
teremos que sair do Euro. Mas, permitam duas perguntas: Em que consistem as
políticas europeias? E em que consiste o Euro?
AS POLÍTICAS EUROPEIAS
Podíamos ilustrar as
políticas europeias percorrendo o calendário de uma semana, já que todas são
iguais.
Segunda feira: Os mercados
estão nervosos devido à indefinição vinda de Bruxelas e as incertezas quanto ao
futuro da moeda única. O Euro desvaloriza, os juros sobem e as bolsas caem.
Terça feira: Um
qualquer mangas de alpaca da Comissão Europeia ou do Eurogrupo (uma espécie de
“Conselho de Ministros” da zona Euro) vem à imprensa dizer uma qualquer
banalidade do tipo: “A Europa tudo fará para proteger o Euro” ou “Tomaremos
todas as medidas necessárias para preservar a moeda única”. Os mercados reagem
a estas ou outras baboseiras ocas e o Euro sobe, os juros baixam e as bolsas
ficam em alta.
Quarta feira: São
divulgados alguns das várias centenas de indicadores económicos, cuja
importância isolada é absolutamente inconsequente, mas que causam impacto nos
noticiários. Esses indicadores são invariavelmente negativos e atingem
particularmente um determinado país da zona Euro. Os mercados reagem. O Euro
desce, os juros sobem, a Bolsa afunda.
Quinta feira: O governo
do país particularmente atingido pela divulgação dos indicadores económicos
negativos reúne-se de emergência e, depois de conferenciar com Bruxelas e
Berlim, faz o anúncio formal de que vai implementar um ambicioso programa de
“Reformas Estruturais” e tomar medidas para “Disciplinar as contas públicas”.
Este programa implica o aumento de impostos, cortes e austeridade. Um badameco
em Bruxelas diz com ar de contentamento que o governo vai “na direcção certa” e
outros chefes de governo aplaudem as “medidas corajosas”. A Bolsa fica em alta,
o Euro valoriza e os juros caem.
Sexta feira: Num
blogue, jornal ou canal de televisão, alguém diz ou escreve que o rei vai nu.
As “reformas estruturais” não são reformas nem são estruturais porquanto apenas
se limitam a cortar serviços públicos, salários e pensões, bem como a aumentar impostos,
e alerta-se para a espiral recessiva concluindo que assim não vamos lá. Os
mercados ficam deprimidos, a Bolsa cai, o Euro desvaloriza e os juros sobem.
Depois, voltamos à segunda feira e o ciclo repete-se até à náusea.
Andamos neste carrossel desde, pelo menos,
2008, o ano em que o céu nos caiu na cabeça, como diriam os gauleses. Porque é
tão indefinida (ou ausente) a política europeia? Será que as pessoas que estão
à frente das instituições europeias ou os seus chefes de governo não sabem o que
andam a fazer?
Seria fácil
respondermos afirmativamente à ultima pergunta e, de facto, as estupidezes
verborreiadas pelas instâncias europeias são tantas e tão constantes, que é
grande, a tentação de pensarmos que afinal somos governados por um renque de
mentecaptos. Porém, como em tudo na vida, as coisas não são tão simples como
parecem, e a resposta é um pouco mais complexa. A Europa não faz política
porque não tem meios para a fazer.
BREVE HISTÓRIA DA
EUROPA UNIDA
A guerra de 1939-1945,
devastou o continente. Mais de quarenta milhões de pessoas morreram na Europa,
entre elas, mais população civil do que militar, vítimas de bombardeamentos,
ocupação, repressão, fome, doenças, deportações, limpezas étnicas e assassínios
em massa. Dezenas de milhões de feridos e incapacitados, de órfãos, viúvas e
viúvos, milhões de vidas suprimidas ou alteradas para sempre pelo curso da
Guerra.
A Alemanha foi dividida
e ocupada e cerca de um terço do seu território perdido para os países
vencedores, o que levou a uma imigração forçada de cerca de quinze milhões de
pessoas. Outros territórios sofreram um rearranjo de fronteiras no centro e
leste da Europa e também mudaram de mãos, e outros tantos milhões de refugiados
polacos, russos, ucranianos, romenos, húngaros e eslovacos foram deportados e
andaram com os seus poucos haveres às costas de país para país.
As infraestruturas e as
cidades foram quase completamente destruídas. A indústria (que havia sido
convertida em indústria de guerra) dizimada. A agricultura, mercê das sortes da
guerra, abandonada. A paz tinha sido conseguida à custa de um preço
elevadíssimo, demasiado elevado para que alguma vez os europeus pensassem
sequer em ser possível voltar a repetir semelhante catástrofe no continente.
Era preciso enterrar definitivamente as causas das desavenças do passado. E
entre estas, avultava desde logo a histórica rivalidade entre a França e a
Alemanha e as rivalidades entre praticamente todos os países europeus. A
história havia ensinado que os aliados de hoje bem poderiam ser os inimigos de
amanhã. A acrescentar a esta necessidade de união para prevenir futuras
guerras, estava em curso outra guerra, felizmente fria, fruto da ocupação
soviética da Europa oriental. Todos estes condicionalismos não só convidaram,
mas também forçaram a um entendimento doravante diferente entre os antigos
beligerantes.
A construção da Europa
Unida deu-se em diversas fases. A primeira, a união franco-alemã para o carvão
e o aço em 1951. Depois, a criação da comunidade económica europeia, em Roma,
que juntava àqueles dois países, a Itália e os três países do Benelux, Holanda,
Bélgica e Luxemburgo, em 1957. Em 1973, mais três países se juntam à CEE: A
Dinamarca e os dois estados das ilhas britânicas, Irlanda e Reino Unido. Em
1981 é a vez da Grécia, livre da ditadura, se tornar o décimo membro. Cinco
anos depois, os dois estados ibéricos, Portugal e Espanha, ambos, como a
Grécia, finalmente livres de ditaduras, juntam-se à Europa. Por 1992,
alteram-se as regras de funcionamento e até o nome, que passa para UE: União
Europeia, significando esta mudança, também uma vontade de integração que não
se ficasse apenas pelos aspectos económicos. Em 1995, novo alargamento, com a
Finlândia, a Suécia e a Áustria. Finalmente, em 2004, dá-se a maior adesão: dez
países, entre os quais as antigas repúblicas soviéticas do Báltico, Letónia,
Lituânia e Estónia, bem como outros países que se libertaram do jugo comunista
na sequência das revoluções de 1989-1990 que se seguiram ao desmoronar do
império soviético: Hungria, Polónia, República Checa, Eslováquia (estes dois
países, na sequência da secessão deste último e consequente fim da
Checoslováquia) e a Eslovénia, a única ex-república Jugoslava a juntar-se até
então à UE. Aderiram também dois minúsculos países-ilha do Mediterrâneo: Malta
e Chipre. Já depois deste alargamento, em 2007, outros dois países da Europa
Oriental, Bulgária e Roménia, tornaram-se membros, elevando deste modo o número
de países para 27 e uma área geográfica que vai do Mar do Norte ao Mediterrâneo
Oriental, do Báltico ao Oceano Atlântico e do Círculo Polar Àrtico ao Estreito
de Gibraltar, às portas de África. Recentemente, foi a vez da Croácia, outra
ex-república jugoslava, se juntar à UE.
As teses da construção
europeia.
Durante este percurso,
a união foi sendo construída mediante um processo moroso de avanços e recuos.
Desde o início, duas teses subjazem à construção europeia: A tese institucional
e a tese federalista.
A construção por via
institucional.
Esta tese é mais cara
aos partidos e governos oriundos da direita ou dos sectores conservadores.
Parte do pressuposto que a união é um work
in progress, ou seja, é algo necessariamente moroso e que inevitavelmente
durará gerações. A integração e união das políticas deve fazer-se mediante
pequenos passos muito bem estudados. E a evolução deve ser quase imperceptível,
lenta, mas segura. No fundo, os estados deverão conservar a sua independência,
sendo a União, um conjunto de entendimentos que revestem a forma jurídica de
tratados, pelo quais os estados aceitam no seu próprio interesse, ceder um
pouco da sua soberania para poderem ter um pouco de soberania partilhada nas
instâncias europeias. A união resume-se a um conjunto de mecanismos que permite
a obtenção de economias de escala, o levantar lento mas progressivo de
barreiras à livre circulação de capitais, bens, serviços e pessoas. No fim de
contas, para os partidários desta tese, a união consiste num conjunto de
vantagens que cada país, no seu próprio interesse egoístico, goza, a troco da
cedência de um pouco de soberania, mas apenas a necessária e suficiente para
assegurar as referidas vantagens. Uma união política plena está completamente
fora de questão. Cada país deve conservar as suas idiossincrasias. Será cada um
por si, excepto nos casos em que é no melhor interesse de cada um ceder um
pouco para obter as tais vantagens comparativas com essa cedência.
A tese federalista.
Esta tese vem sendo
defendida pelos governos e partidos mais liberais ou mais à esquerda. Sendo uma
tese mais voluntarista, pretende que a Europa, enquanto entidade a se, é superior, ou antes, tem um valor
superior à mera soma dos seus estados membros. Assume que os europeus, pese
embora toda a sua diversidade, possuem uma identidade própria. Aliás, entende
que a essa diversidade de culturas representa uma das suas riquezas e não um
obstáculo à concretização da união. Para alcançar este objectivo, pretendem os
federalistas uma integração mais plena e mais rápida das políticas europeias.
Entendem também que a Europa social, das pessoas, deve sobrepor-se à Europa
económica ou dos negócios. A Europa deve ser uma assunto dos europeus e não dos
governos europeus. As instituições europeias devem representar, tanto quanto
possível, os povos da Europa, mais do que as suas instituições nacionais.
A crescente integração
de normas e políticas deve ter, como corolário lógico, a formação de uma Europa
com órgãos de governo próprios, distintos dos governos nacionais. No futuro,
haverá uma federação ou confederação de estados, os “Estados Unidos da Europa”
Em que ponto estamos,
no que diz respeito à construção europeia?
Sede da Comissão Europeia, Bruxelas.
Para responder a esta
pergunta, desviemo-nos um pouco e atentemos no edifício constitucional
construído pelos nossos primogénitos, os Estados Unidos da América.
A constituição
americana, pese embora o facto de ser anterior à revolução francesa, é, como
sabemos, tributária das ideias iluministas e da sede de liberdade e libertação
do ancien regime que estiveram na
base daquela que foi a revolução das revoluções e que marca o advento da
modernidade. Assim, serão benéficos os frutos que recolhermos com a experiência
dos nossos primos do outro lado do atlântico.
Os Estados Unidos são
uma república federal. Cada estado possui os seus órgãos próprios de poder. O
poder executivo é exercido pelo governador, directamente eleito e cujo poder é
independente do poder legislativo (ou seja, este não tem o poder de o fazer
cair politicamente, tendo apenas o poder de o destituir, mas só em casos muito
excepcionais). Este governador tem uma administração com vários membros, numa
estrutura que podíamos comparar a um primeiro ministro e um governo,
respectivamente. Este poder executivo é escrutinado por um parlamento com duas
câmaras que exerce o poder legislativo, o Senado, cujos membros são eleitos
segundo um princípio de universalidade, e a Câmara dos representantes, uma
espécie de “Câmara Baixa” (por oposição à “Câmara alta” que será o Senado),
cujos membros são eleitos segundo um princípio de proporcionalidade. Cada
estado possui também a sua própria constituição e os seus próprios órgãos
judiciais, incluindo um Supremo Tribunal.
Acima dos estados e dos
seus órgãos de poder, a Federação tem os seus poderes – os poderes federais,
constitucionalmente atribuídos - que são exercidos em todo o território e se
sobrepõem aos poderes estaduais. Como sabemos, o poder executivo é exercido
pelo presidente, cuja eleição resulta das 50 eleições estaduais, que forma uma
administração ou governo, diríamos nós em termos europeus. A administração é
escrutinada pelo Congresso, que alberga duas câmaras, tal como os parlamentos
estaduais. O Senado é a mais importante e cada estado elege dois senadores,
seja a California, seja o Wyoming. Subjaz aqui, pois um princípio de
universalidade no que à eleição do senado diz respeito. Todos os estados são
iguais entre si em dignidade e direitos, independentemente da extensão do seu
território, do número da sua população ou da importância da sua economia, pelo
que cada um é representado por dois senadores por igual. Já na Câmara dos
Representantes, os congressistas são eleitos segundo a representação
populacional, ou seja, os estados mais populosos fazem eleger mais congressistas
do que aqueles que têm menos eleitores. Há, pois, um compromisso entre a
representação estadual (dois senadores por cada estado, grande ou pequeno) e a
representação eleitoral (mais eleitores, mais representantes).
Já na União Europeia,
são completamente diferentes – porque diferentes são os pressupostos – os
órgãos de poder.
Aparte o Tribunal
Europeu, os órgão políticos são o Parlamento Europeu, a Comissão Europeia e o
Conselho Europeu.
O Parlamento Europeu
tem os seus membros eleitos por estado, cabendo a estes um número variável de
deputados, de acordo com a sua demografia, ou seja, há aqui um princípio de
proporcionalidade. Porém, os deputados candidatam-se em listas de partidos
nacionais, e não europeus. Depois de eleitos, por uma razão de afinidade,
agrupam-se em partidos europeus (que na verdade não existem enquanto tal). O
Parlamento Europeu tem hoje mais poderes que inicialmente, mas está muito longe
da importância, quer dos parlamentos nacionais, quer do Congresso americano.
Para não dizer que a sua actividade é residual, diremos que, no máximo, é muito
limitada. A sua escassez de poderes não tem correspondência com a sua
representatividade.
O órgão executivo é a
Comissão Europeia, que executa as suas próprias directivas, mas que executa
também as directivas do Conselho Europeu e implementa as decisões do
Parlamento. À frente da Comissão está o Comissário Europeu, ou presidente da
CE, que é uma personalidade escolhida pelo Conselho Europeu. Este, ao contrário
do que sucede com qualquer Presidente ou Primeiro Ministro (consoante estejamos
perante uma democracia presidencialista ou parlamentar) não é livre de escolher
o seu elenco governativo baseado naqueles que são os dois princípios que devem
nortear essa escolha: competência técnica e solidariedade política. Os membros
da Comissão são designados pelos governos nacionais, e estes têm mais ou menos
comissários, consoante a sua demografia. Em tese, o pobre Comissário pode vir a
presidir a uma Comissão que tem no seu elenco simultâneamente comissários
comunistas e neonazis! De ordinário, convivem no mesmo elenco, liberais,
sociais democratas, conservadores, verdes/ecologistas e democratas-cristãos, ou
quaisquer outras ideologias, consoante a orientação política dos governos
nacionais que são quem os designa. A composição da Comissão é assim imposta pelos
governos dos estados. É como se o Presidente dos EUA tivesse que ter no governo
um secretário do Departamento de Estado designado pela Califórnia, um
secretário de estado do tesouro imposto pelo Illinois, um secretário de estado
do comércio indicado pela Florida, etc. Um outro aspecto relevante prende-se
com a preocupação de fazer prevalecer o princípio da proporcionalidade num
órgão desta natureza. Os países com mais população têm mais comissários e os
menos populosos, menos. Mas, como o órgão, ao contrário do Parlamento, tem um
número limitado de membros, esta proporcionalidade resulta distorcida. A
solução encontrada para matizar este problema tem sido a criação de comissões
(pastas ou ministérios, diríamos, se nos estivéssemos a referir a governos nacionais),
para encaixar tanto comissário, mas a verdade é que, por um lado, muitas dessas
comissões são redundantes e, por outro, as comissões “importantes” são
invariavelmente cometidas aos comissários dos países dominantes.
Finalmente, o órgão
mais importante é o Conselho Europeu. Este é composto pelos chefes de estado e
de governo dos estados membros, que são, por conseguinte, pelo facto de serem
Presidentes (nas democracias presidencialistas) ou Primeiros Ministros (nas
democracias de tipo parlamentar), membros por inerência deste órgão.
Inicialmente, o Conselho reunia a cada presidência da União, que é rotativa e
dura seis meses, ou seja reunia duas vezes por ano. Ultimamente, e mercê da
crise, reúne mais amiúde. Entre reuniões ou cimeiras, existem várias
comissões permanentes compostas por funcionários que asseguram as negociações
que precedem a próxima cimeira e a implementação das medidas tomadas na cimeira
precedente. Ao contrário do que sucede na América, na Europa não há um
presidente, ou antes, um órgão eleito para exercer o poder executivo. Será que
poderíamos imaginar os EUA governados por um “conselho de governadores”, com os
estados mais populosos e economicamente importantes a ditar a sua vontade, em
vez da administração? Pois é exactamente o que sucede na Europa.
Em suma, os traços
distintivos dos órgãos de poder europeus são os seguintes:
Dos três, apenas o
Parlamento é eleito por sufrágio directo, e ainda assim em listas nacionais e
não europeias, sendo este, dos três órgãos o que notoriamente tem menos poder.
A Comissão Europeia é
constituída por funcionários nomeados. O Presidente é um funcionário nomeado
pelo Conselho, ao passo que os outros comissários são nomeados pelos
respectivos governos nacionais. Muito embora já haja um órgão em que os membros
são eleitos segundo um princípio de proporcionalidade, o Parlamento, este mesmo
princípio é, ainda que de um modo altamente distorcido, observado na Comissão.
Este órgão, sendo executivo, acaba por ser a longa manu do Conselho, já que os poderes de escrutínio por parte
do Parlamento são muito reduzidos ou ineficazes.
O Conselho Europeu é o
órgão máximo, o que significa que, na arquitectura constitucional da União
Europeia, reina o primado dos poderes nacionais sobre a Europa. Nenhum dos
membros do Conselho é eleito para a função, todos são membros por inerência.
Temos que recuar mais de dois mil anos para encontrar um órgão de poder com
tantas e tão importantes competências em que nenhum membro é eleito por
sufrágio: O Senado Romano, a quem pertenciam, por inerência, os pater familias das famílias patrícias de
Roma. Neste órgão, vale o princípio da universalidade, isto é, um país, um
representante. Porém, bem sabemos que a tomada de decisões não é um processo em
que a negociação e o compromisso prevaleçam sobre os interesses nacionais. Pelo
contrário, para cada cimeira, os chefes de estado e de governo vão defender os
“interesses nacionais”, ou seja, vão a cada cimeira tentar receber mais do que
aquilo que tiverem que dar.
As decisões do
Conselho, nos últimos anos, têm-se caracterizado por duas constantes: Ou são
“não decisões” por puro tacitismo político, seja porque num determinado país
vão ocorrer eleições gerais, ou há um referendo à porta, ou eleições regionais
daí por um par de meses, ou são decisões invariavelmente impostas por um número
muito reduzido de países e acatadas pelos outros, regra geral, impostas pela
Alemanha, o país mais populoso e economicamente mais forte, e apoiadas pela
França e pelos países do “norte” (Benelux e Escandinávia), com o Reino Unido
sistematicamente de fora (como se de um não membro ou mero membro observador se
tratasse).
Temos assim uma
contradição insanável entre a democracia e os poderes de representação. Só
estados em que vigorem regimes democráticos é que podem aderir à União. Porém,
dos três órgãos de poder, apenas um é eleito (e logo aquele que tem, de longe,
menos poder), o segundo é composto por membros por inerência, e o terceiro é
constituído por funcionários escolhidos pelos membros do segundo. São os
governos nacionais, e não um “governo europeu”, quem manda na União. O poder
não é democrático, ou seja, a composição dos órgãos, à excepção do Parlamento,
resulta de uma democraticidade indirecta ou reflexa, sendo certo que um dos
órgãos é que nomeia o outro. À legitimidade democrática directa, que é apanágio
de qualquer democracia, a União contrapõe a não democracia europeia, um corpo
de funcionários nomeados, os “Sir Humphreys” de Bruxelas (lembram-se das
famosas séries “Sim, senhor Ministro” e “Sim, senhor Primeiro Ministro” em que
o funcionário, Sir Humphrey dava sempre a volta ao ministro/primeiro ministro e
levava sempre a água ao seu moinho?).
Ausência de
representação, falta de legitimidade, opacidade, receio da soberania popular,
auto legitimação, exército de funcionários que obedecem naturalmente a quem os
nomeia e que exercem um enorme poder sem qualquer legitimidade, nem
responsabilização nem escrutínio. Eis a razão do impasse e da decadência da
União Europeia e a razão pela qual os europeus não se revêm na sua Europa.
Alguns dirão: Mas a
Europa não é uma federação, ainda não é uma federação; é natural que sejam os
estados a mandar. A esses respondemos: a Europa já é uma federação; apenas não tem os instrumentos constitucionais adequados
à sua realidade. E formar esses instrumentos pressupõe, em primeiro lugar,
possuir a inteligência e a visão necessárias para o reconhecer e reconhecer que
sem eles a Europa definha e desaparece. Em segundo lugar, vontade política para
dar esses passos, e em terceiro lugar, coragem para o fazer, sem medo dos
povos, sem medo da democracia. Ora, se é certo, como já alguém disse, que
vivemos a pior crise dos últimos oitenta anos, não é menos certo que por grande
azar logo nos calharam os piores líderes dos últimos sessenta anos! (Não digo
dos últimos oitenta, porque isso significaria que os actuais seriam piores do
que Hitler, Mussolini, Franco ou Salazar, para nomear apenas alguns, o que,
para já, ainda não é verdade). A liderança europeia (ou a ausência dela) é fraca, medíocre, mesquinha,
néscia, falha de visão, coragem e atitude. É o oposto do que necessitamos para
os conturbados tempos em que vivemos.
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