Reforma do Estado (conclusão).
Justiça
REFORMA DA JUSTIÇA
Sejamos absolutamente
claros e cristalinos. O nosso sistema de justiça não está podre, apenas tem um
cheiro esquisito! Queremos com isto dizer sem rodeios que, no que à justiça diz
respeito, falta realizar o Estado de Direito.
Diz a Constituição, num
dos seus artigos mais belos que os “Tribunais são os órgãos de soberania com
competência para administrar a justiça em nome do povo”. Esta escolha de
palavras não é arbitrária. Com efeito, os Tribunais têm uma função que é
soberana, têm por missão administrar a justiça, e devem fazê-lo em nome do
povo.
Comecemos logo pelas
funções de soberania. Um Estado de Direito Democrático ou tem uma justiça justa
ou não é um Estado de Direito Democrático. Queremos com isto dizer que da
qualidade da justiça se afere a mera existência do Estado de Direito. Depois,
há o dever de administrar, mas esta administração não pode ser uma qualquer.
Porque se trata da justiça, tem que ser prudente, séria, avisada, competente.
Por fim, na sua função soberana, a justiça é administrada em nome da
comunidade, ou seja, em nome, por conta e no interesse do povo. Este, enquanto
comunidade actuante e organizada, deve rever-se na justiça que, em seu nome, os
Tribunais realizam. O conceito de justiça, por sua vez – e sem fazermos apelo a
conceitos mais próprios da filosofia ou teoria do Direito – é o conceito amplo.
Numa sociedade moderna, significa que na administração da justiça, cabe
simultâneamente o cumprimento da lei (princípio da legalidade), a aplicação do
Direito (a solução mais correcta para o caso concreto) e a realização da
justiça (como bem imanente e ultima ratio
deste poder soberano), ou seja, atribuir a cada um aquilo que é seu, não
prejudicar ninguém, actuar com rectidão, o que corresponde às dimensões da
justiça comutativa e distributiva. Uma decisão deve ser simultâneamente legal,
recta e justa para ser boa. Deve ter o condão de conformar as partes em
disputa, colocar uma pedra sobre a contenda, virar uma página na vida dos
intervenientes, apurar a verdade material e inspirar toda a comunidade a
praticar o bem e não violar o direito alheio.
Ora, se não temos
dúvidas quanto à obediência que os Tribunais prestam à lei, já quanto às outras
duas dimensões mais imanentes, mormente quanto à realização da Justiça, temos
que dizer sem rodeios que o rei vai nu.
Com efeito, o nosso
sistema de justiça é lento, ineficaz, ineficiente, formalista, ritualista,
burocratizado, incompetente, vazio de conteúdo, tem falhas éticas não pouco
importantes, em alguns aspectos ainda é tributário do sistema pré moderno de
tipo inquisitorial. A ausência de uma justiça justa tem como consequência final
a ausência de confiança do povo no sistema, o que é demolidor para a democracia.
Em suma, para reformá-lo há que resgatá-lo e trazê-lo para o século XXI.
São três, a nosso ver,
as falhas do sistema, e três as soluções que propomos.
LEI
No plano legislativo,
vimos assistindo a uma “lexorreia” sem fim desde há pelo menos uns bons vinte
anos ou mais a esta parte. As leis são feitas aos milhares, às toneladas,
pretendem cobrir tudo e todos, aspirando assim à plenitude, são tecnicamente
mal elaboradas e, muitas vezes eticamente duvidosas, mais parecendo, algumas,
que são feitas à medida para prejudicar uns e beneficiar outros. Falta
coerência e sistemacidade ao nosso corpus
legislativo, o que transparece depois na sua aplicação concreta.
Propomos uma
reformulação da nossa codificação elementar. Um único código de processo que,
na sua parte geral, disponha de igual modo para todos os tipos de processo onde
a especificidade de cada um não aconselhe um desvio à norma geral. Princípios
constitucionais processuais, partes, competências, impedimentos,
litispendência, notificações e citações, peças processuais, prazos, modo de
condução dos actos judiciais e diligências, etc., todas estas e bem muitas mais
matérias podem ser unificadas e tornar o processo mais prático e menos complexo.
Depois, normas específicas para cada tipo de processo (civil, penal, fiscal,
etc.). Especial cuidado deve ser dado à busca da verdade material em todo o
processo e não apenas no penal; Devem ser as partes e não o juiz a conduzir o
processo, cabendo a este observar a legalidade do procedimento e decidir
segundo a prova produzida. Os recursos devem ser usados como meio de obter uma
melhor decisão e não como expediente dilatório, pelo que devem ser definidos
rigorosamente as modalidades e âmbito destes.
No plano penal, deve
ser reformulada a parte especial do Código penal, de forma a que exista uma
sistematização coerente das consequências do crime. A pena de prisão deve ser
erigida em medida de todas as penas, a pena de multa deve ser eleita a pena “rainha”
(a pena mais utilizada nos países civilizados) e a pena de serviço comunitário,
a pena profiláctica por excelência, devendo esta ser regulamentada de modo a que
se torne “obrigatória” e inevitável a sua aplicação, quando prescrita para
determinado crime. Os regimes da liberdade condicional e da reincidência devem
finalmente obedecer às finalidades da ressocialização e da prevenção
especial e geral e as prisões devem ser
locais para onde vão os criminosos e não os pobres, os tontos, os doentes e os
dementes, como é hoje o caso. Os estabelecimentos de reclusão juvenil devem ser
escolas de formação de cidadãos e não, como actualmente, escolas de crime e
violência.
Especial atenção deve
ser dada aos crimes de corrupção e crimes conexos, os quais devem merecer uma
severa censura do sistema, já que a corrupção, para além de desvirtuar a
economia, mina a democracia e o Estado de Direito.
Devem ser reforçadas as
competências e os meios, quer do Ministério Público, quer da Polícia
Judiciária, bem como ser dado um impulso determinante à Polícia Científica.
No plano processual
penal, devemos inverter por completo os princípios do nosso sistema. Como
alguém já disse, em Portugal, primeiro prende-se e depois investiga-se. Este
sistema é próprio de Estados de “Não Direito”. O estatuto actual do arguido
(que, face à lei, é inocente até ao trânsito em julgado da decisão
condenatória, mas que, aos olhos da comunidade, é culpado, mesmo depois de ser
feita a prova da sua inocência) deve dar lugar ao estatuto de mero “suspeito”,
sendo este, para efeitos de investigação, qualquer pessoa que possa ter
qualquer relação com qualquer facto ou elemento da investigação. Só com a
acusação deve ser atribuído um estatuto processual, aí, sim, ao arguido. Devemos
investigar primeiro e prender (se for o caso), depois.
O que nos leva a dois
cancros do sistema de justiça: a prisão preventiva e o segredo de justiça.
As medidas de coação
visam essencialmente trazer o arguido à presença do Tribunal. Têm, também,
outros objectivos: Impedir a fuga deste, impedir a continuação da actividade
criminosa, impedir a perturbação do inquérito, impedir a eliminação de provas.
No entanto, as medidas de coação são usadas, de ordinário como “pré-penas”,
isto é, no juiz de instrução forma-se desde logo uma convicção de culpa ou
inocência: Se lhe parece inocente, o juiz solta; se lhe parece culpado, o juiz
prende. E a prisão preventiva é utilizada como arma de arremesso. Por razões
que nada têm a ver com os objectivos inerentes às medidas de coação supra descritos,
uns arguidos são presos e outros, soltos, estando em plano de igualdade
relativa. Uns são presos porque “colaboraram pouco ou recusaram colaborar” com
a investigação, mas logo a medida será revista e poderão ser soltos se
colaborarem mais, isto é, a prisão preventiva é usada como meio de coação para
fazer avançar a investigação, o que diz bem da qualidade com que se faz
investigação criminal em Portugal. Outros são presos porque são figuras
públicas ou tidos como “importantes” ou “poderosos” e prendendo, os tribunais
vingam o ressabio da populaça, mostrando-se insensíveis à importância ou ao
poderio putativos, sem cuidar de saber se, no caso concreto, a prisão
preventiva se justifica. Enfim, seria penosamente fastidioso relatar aqui o que
vivemos na nossa vida profissional quanto a esta matéria. Digamos apenas que
propomos que a medida de coação que deve ser a regra será a fiança, apropriada
para um mundo que se move a dinheiro, e não a prisão para quem ainda não foi
julgado.
No que diz respeito ao segredo
de justiça, todos sabemos que a sua observação é uma anedota pegada. Se uma
investigação está em curso, está sob segredo e, por conseguinte, só os
investigadores ou pessoas a eles ligados é que sabem o suficiente para violar
esse segredo. É óbvio que a violação do segredo de justiça parte sempre da
investigação, o que diz, também aqui, bem da qualidade desta. Por vezes, a
investigação chega a um impasse. Então, larga-se uma “bisca” na comunicação
social para ver se alguém reage, dando-se assim um “impulso” à investigação.
Por sua vez, a investigação às fugas da investigação é, ela própria, patética.
A culpa morre invariavelmente solteira.
Ora, se se investigar
primeiro e se acusar depois, este problema resolve-se por si. Antes de haver
uma acusação, ninguém, por ventura nem os suspeitos sabem que estarão a ser
investigados. A violação do segredo de justiça deixará assim de ser um caso de
polícia para ser um caso de internamento, pois só um completo imbecil seria
capaz de violar a sua própria investigação. O segredo de justiça deixaria de
poder ser usado como expediente investigatório.
ORGANIZAÇÃO
A organização do
funcionamento dos Tribunais é de um amadorismo confrangedor, já o dissemos. Um
acto pode não ser praticado ou ser praticado em duplicado. Convocam-se
testemunhas ou peritos para uma diligência, mas não se convocam todas as
pessoas necessárias para que esta tenha lugar; cada juiz manda na sua agenda,
pelo que se marcam para a mesma sala, no mesmo dia e à mesma hora diferentes
audiências. Um despacho de simples expediente pode demorar um ano ou mais a ser
comunicado porque alguém se esqueceu de o fazer. A lista é interminável.
Tudo isto sucede porque
os Tribunais estão virados para dentro, obedecem às suas próprias lógicas, e
não estão, como deveriam estar, centrados no serviço que prestam – a Justiça –
nem para quem verdadeiramente trabalham, os cidadãos, o tal povo em nome de
quem administram a justiça. Devemos, pois, levar a cabo uma profunda reforma
que tenha por objectivo a prestação de serviços de justiça de qualidade aos
cidadãos. O cidadão enquanto utente do serviço, deve ser o centro da
organização.
Propomos a
implementação de um sistema de certificação de qualidade, de modo que, para
cada procedimento haja uma “check list” de tarefas, e que o controlo
informático impeça que sejam cometidos erros como os que acima exemplificámos.
O edifício deve ser gerido por uma equipa profissional de modo a que os juízes
não percam tempo com questões laterais que nada têm a ver com o seu trabalho e missão, e devem ser
estabelecidas sanções automáticas para as falhas em prazos e erros. Não é por
os Tribunais serem lentos que a justiça é má; é por ser mal administrada que os
Tribunais são lentos. A má administração é causa, e não consequência, da lentidão
da justiça.
OPERADORES JUDICIAIS
Há vários anos que se
trava uma guerra intestina no sistema de justiça, quer entre magistrados, quer
entre estes e os restantes operadores judicias, funcionários e advogados. Há
uma luta pelo controlo do poder, a que está ligada a máfia dos sindicatos e associações
sindicais (utilizamos a expressão sem qualquer rebuço). Quem pertence ao
“clube” leva um pontapé para cima e é promovido, quem não pertence fica no
limbo. A avaliação é uma anedota. Contam-se espingardas nos Conselhos
Superiores das magistraturas. Impera a cultura de casta. A justiça encontra-se
privatizada por interesses corporativos. Escudados na independência do órgão de
soberania, os funcionários destas instituições pretendem governar um Estado
dentro do Estado. Há a vontade velada de judicializar a política e de impor, em
última instância uma “República de Juízes”, seres iluminados, erigidos em
únicos detentores da verdade (e do poder) por mecanismos de auto legitimação e
que, a cada momento, definem o que está certo e o que está errado no que concerne
à actuação dos órgãos de poder democrático. Pretendem, afinal, a governação por
sentença, tão fascista como a governação por decreto.
Ora, impõe-se uma
“limpeza” na organização destas estruturas. E se é verdade que seria muito
apetecível, pura e simplesmente banir estas máfias, decretando a extinção
destes exóticos sindicatos de membros de órgãos de soberania (cabe perguntar se
não será curial a criação de sindicatos de deputados, sindicatos de ministros e
secretários de estado, ou até de sindicatos de Presidentes da República!) a
verdade é que a sua extinção forçaria apenas à sua continuidade na
clandestinidade. O que é necessário é decapitar estas máfias, esvaziando as
guerras pelo controlo do poder. O poder das estruturas da cúpula das magistraturas
deve ser apenas funcional. Os Tribunais são independentes do poder político,
mas essa independência é funcional. Os Tribunais não são um órgão de soberania
em sentido próprio, como se do parlamento ou do governo se tratassem. Os seus
funcionários são, antes de mais, funcionários públicos, pelo que, não obstante
o estatuto de autonomia de que gozam e os poderes especiais em que foram
investidos, devem obedecer, enquanto funcionários e enquanto serviços do
Estado, aos poderes democráticos, desde logo ao governo que tem a seu cargo a
organização da administração, em que a justiça indubitavelmente se insere. Isto
nada tem a ver com o ataque à independência dos Tribunais, bandeira que as
castas prontamente agitam quando vislumbram alguma tentativa de reforma. É
possível, do nosso ponto de vista, levar a cabo uma profundíssima reforma na
organização dos poderes judiciais, chamando ao governo e à AR as competências
fundamentais, sem deixar cair os princípios constitucionais de autonomia das
magistraturas e independência dos Tribunais.
Outra guerra que tem
que ser travada é no combate à doutrinação (vulgo, “injecção atrás da orelha”!)
dos magistrados por meio dessa verdadeira Faculdade de Direito de segundo grau
em que transformou o Centro de Estudos Judiciários. (NOTA: Nunca frequentámos
nem sequer nos propusemos jamais a este Centro. Não há qualquer espécie de “dor
de cotovelo” quanto a esta matéria). Este, de escola de doutrinação e
formatação de magistrados, deve transformar-se em escola de formação para todas
as profissões jurídicas, magistrados, mas também advogados, notários e outros, diluindo-se
assim o efeito de casta que hoje existe.
A reforma das cúpulas,
um sistema de verdadeira avaliação segundo os resultados e não segundo a
filiação sindical, o esvaziamento de poder das organizações, competindo-lhes
apenas a organização funcional dos serviços, a mescla de operadores na
aprendizagem e formação das diferentes profissões jurídicas, trarão ao sistema
de justiça uma maior qualidade. É que se é certo que em todas as profissões há
bons e maus profissionais, apenas em três delas esta coexistência é proibida:
Não se pode ser mau actor, nem mau cirurgião, nem mau juiz.
A reforma do sistema a
estes três níveis que vimos de descrever – Lei, organização, operadores
judiciais – deverá ter como efeito uma melhoria muito acentuada na qualidade da
nossa justiça. Boas decisões, eficazes, eficientes e, tanto quanto for
permitido, rápidas. Os efeitos na sociedade, com o reforço da confiança dos
cidadãos na sua justiça, e na economia (estima-se actualmente que cerca de 5%
do PIB é “desperdiçado” em ineficácia, ineficiência e atrasos na justiça) serão
apreciáveis.
Com estas três reformas
fundamentais – reforma do território, reforma fiscal, reforma da justiça - o
Estado sofrerá uma profunda transformação, ficará mais ágil, mais gerível e
mais barato, sem perder as suas funções. Os cidadãos serão mais bem
representados e haverá uma maior confiança entre estes e quem os representa. A
sociedade terá mais qualidade. A economia será mais saudável. O défice crónico
deixará de ser uma tormenta e a dívida baixará para limites aceitáveis. Haja
coragem e visão.
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