Do estado das coisas, capítulo 4
Depois da análise e crítica dos problemas, finalmente entramos nas soluções, que é o que se precisa.
Por Camilo Castelo Negro
CAPÍTULO 4
AS SOLUÇÕES
CAMINHAR CAMINHANDO.
Já estamos todos um
pouco saturados de discorrer sobre os problemas que nos afligem, da sua origem,
das causas próximas e remotas, dos seus protagonistas, vítimas e vilões.
Sistematizemos, pois, as soluções. Do nosso ponto de vista, se temos um
problema com a democracia, teremos de encontrar uma solução para a democracia,
e não fazer experiências tentado inventar um novo sistema de governo ideal e
sem falhas. Se há um problema na economia, não percamos tempo e desperdicemos
energias a inventar um sistema económico que vai acabar com todos os problemas,
porque a História já provou abundantemente – e com consequências desastrosas –
que os sistemas perfeitos não existem. Abordemos, então as soluções em diversos
planos: A democracia e a economia nacionais, a Europa em que nos inserimos e o
sistema económico em que vivemos.
DA DEMOCRACIA
Vimos anteriormente que
há um evidente divórcio entre o que se convenciona chamar a “classe política” e
a “sociedade civil”, ou os cidadãos. Com efeito, um dos valores da democracia
que está francamente em crise é o da representatividade. Outro será o da
legitimação e outro ainda, o da responsabilização ou acountability. A maior parte dos cargos de decisão – nas instâncias
internacionais, nos institutos públicos, etc. – resultam de uma legitimidade
lateral ou indirecta. Os candidatos a titulares de cargos políticos são
previamente escolhidos por uma minoria muito reduzida de pessoas, a plutocracia
dominante nos partidos, nos meios académicos, nas instituições, entre as quais
avultam aquelas que referimos supra, e não existe uma responsabilização que se
traduza em sanções concretas para os políticos quando estes, dolosamente,
prejudicam a República.
O que propomos?
Propomos que a sociedade
civil se sirva dos partidos, já que estes últimos se têm servido abundantemente
da primeira. O que pretendemos dizer? Em vez de os candidatos a titulares de
cargos políticos serem escolhidos pelo partido, seja isoladamente pelo chefe,
por um grupo restrito de militantes “notáveis” (barões e caciques) ou mesmo em
eleições “directas” em que participam apenas os militantes com as quotas em
dia, estes candidatos devem ser escolhidos pelos eleitores em eleições
primárias. Mas, vamos mais longe. Qualquer pessoa deverá poder candidatar-se
por um partido, seja ou não militante, desde que a sua base programática se
identifique com a do partido em questão.
Imaginemos o seguinte
cenário: Um militante “de referência” de um certo partido, um cacique local que
há mais de vinte anos anda a saltitar de cargo em cargo, dá uma entrevista em
que expressa a sua vontade de se candidatar à Câmara Municipal de uma das
principais cidades do país. Na sequência desta entrevista, surgem na imprensa e
na televisão “apoios de peso” dados por outros barões e caciques do mesmo
partido. É encenada uma “vaga de fundo” protagonizada pelo candidato que visa,
aos olhos dos caciques concorrentes, tornar inevitável a sua nomeação pelo
partido. O resultado provável é a nomeação, sem escolha, do candidato
espertalhão. Se este tiver, com o seu gesto, desafiado outro cacique, dá-se
então o “contar de espingardas”, isto é, cada um conta os apoios que tem nas
estruturas locais do partido: na secção A, promete-se um lugar numa empresa
municipal à filha do militante com maior capacidade de influenciar os demais, e
este arregimenta os 30 ou 40 votos dessa secção; na secção B, ameaça-se quem
não votar em determinado candidato com o corte de verbas para a freguesia, e
assim por diante. Sem nenhum programa político, sem nenhum plano de acção, a
escolha do candidato faz-se ou nos media, ou na arregimentação de votos dos
militantes, quer com ameaças, quer acenando vantagens mais ou menos obscuras.
Se a escolha for
efectuada por meio de eleições primárias, este cacique aparece a candidatar-se
sem programa, numa entrevista. Porém, logo aparece um conhecido arquitecto
dessa cidade a protagonizar uma candidatura pelo mesmo partido, apresentando
concomitantemente um programa político de acção. Este outro candidato diz aos
cidadãos da sua cidade o que pretende fazer, quando, como e com que meios, que
objectivos tem e como pretende alcançá-los. Surge uma professora universitária
que se declara candidata também por esse partido e apresenta outro programa. Um
médico respeitado na comunidade também avança com uma candidatura pelo mesmo
partido e apresenta o respectivo programa. Onde fica o cacique no meio disto?
Pela primeira vez na vida terá que ter ideias e, mais importante, terá que
apresentá-las e confrontá-las com as ideias dos outros candidatos. De nada lhe
servirá contar espingardas ou arregimentar apoios no seio do partido, pois o
número de votantes pode aproximar-se dos 100 mil, ao passo que os militantes
locais não chegam a 5 mil. Este cacique tem que fazer um pouco mais do que
encenar uma “vaga de fundo”; terá que apresentar um programa que seja melhor
que o dos outros candidatos. Imaginemos então que, nessa cidade, cerca de 100
mil eleitores comparecem às urnas para votar nas primárias. Que hipóteses terá
uma má candidatura? Feita a escolha neste partido, o candidato saído das
primárias terá agora que se haver com os candidatos vencedores das outras
primárias que ocorreram nos outros partidos. O número total de eleitores das
primárias irá assemelhar-se ao número de votantes para a autarquia. Os
programas são públicos e amplamente debatidos. Os candidatos não foram
escolhidos por um pequeno grupo de iluminados, mas sim pelos votantes de cada
partido. Melhora a qualidade dos candidatos. Melhora a qualidade do debate e do
contraditório. Confrontam-se ideias e planos, e não pessoas. Melhora a
participação, visto que foram os eleitores que escolheram previamente os
candidatos. Melhora a democracia.
O que vem de ser dito
para encontrar um candidato para as eleições autárquicas, pode ser extrapolado
para as eleições legislativas. O “candidato” a primeiro ministro não tem
forçosamente que ser o chefe do partido. Este deve ser apenas um secretário que
tem funções executivas, de organização do partido, e não necessariamente o
primeiro ministro em caso de vitória. Assim, tal como nas eleições
presidenciais em que, quem quer ser candidato, propõe-se sem pedir ou esperar o
apoio dos partidos, também para este cargo – o mais importante na nossa
democracia – qualquer cidadão deve poder candidatar-se, exprimindo a sua
vontade por meio da apresentação de um programa eleitoral que servirá de base ao
programa de governo. Mais uma vez, estes cidadãos deverão usar as bases
programáticas dos partidos já existentes que, a nosso ver, cobrem
satisfatoriamente o espectro político. Se surgirem quatro ou cinco candidatos
no partido A e outros quatro ou cinco no partido B e outros tantos no partido
C, os eleitores ficarão elucidados quanto ao que esperar do próximo governo. As
eleições serão decididas não entre personalidades, mas entre programas. A
responsabilização dos titulares de cargos políticos será muito maior, porquanto
a sua eleição resulta de uma escolha ampla, previamente escrutinada e
esclarecida, com evidentes benefícios para a qualidade da nossa democracia.
Objecções: Então e os
partidos, para que servem, afinal, se os seus militantes perdem o “direito” de
escolher previamente os candidatos? E que garantias dá o candidato escolhido
pelos eleitores que seguirá as bases programáticas do partido? E a coesão do
partido, não ficará este fragmentado e dividido perante a opinião pública? E
qual é o interesse, então em fazer uma “carreira” na política para poder chegar
a chefe quando, vindo do nada, pode irromper da sociedade civil um candidato
que ultrapassa o político profissional?
Resposta às objecções:
Os partidos deixam de ser instituições cristalizadas, estados dentro do estado,
agências de emprego para militantes ambiciosos. Estes passam a ser apenas
voluntários, pessoas que acreditam nos ideais de um certo partido e para ele
contribuem com tempo, dinheiro ou ambos. Entre os valores em confronto de poder
usar um partido como base para propor uma candidatura aos eleitores, por um
lado, ou manietar a escolha dos eleitores só porque se pertence a uma
organização, por outro, devemos optar pelo óbvio. Ser militante de um partido
não deve dar o poder de constranger a escolha dos nossos representantes. Quanto
às questões relativas à unidade ou coesão do partido, esses valores são de
importância residual perante os valores da legitimidade democrática e da
qualidade do debate e do contraditório. Os partidos terão que se habituar à sua
nova vida. A fidelidade ao partido por parte dos candidatos é uma falsa
questão; um candidato que se declara por um determinado partido e depois
apresenta um programa em que os votantes nesse partido não se revêm está
condenado ao fracasso. Pior é quando um candidato promete ser fiel a
determinadas políticas e depois, quando ganha o lugar, faz o oposto do que
prometeu, comprometendo então – e de que maneira – a fidelidade aos princípios
e ideais do partido. Quanto à questão da “carreira” do político profissional, a
resposta é só uma: Paciência, sê melhor que os teus rivais, vai trabalhar! Não
se é político, está-se na política.
As incompatibilidades e
os impedimentos: A questão dos políticos profissionais.
Esta questão é sempre
levantada com propósitos éticos muito louváveis, designadamente quanto aos
deputados. Deve haver uma rigorosa estatuição de incompatibilidades entre os
titulares de cargos públicos e os interesses privados de modo a que o “poder
económico” não se sobreponha ao “poder político”. Esta tese é defendida
ciclicamente por líderes fracos que têm problemas de disciplina interna nos
seus partidos. A teia de incompatibilidades é hoje de tal forma apertada que só
um político profissional, isto é, uma pessoa que não tenha vida profissional
fora da política, é que está livre de incompatibilidades. Isto convém ao líder
fraco, porquanto, deste modo, o deputado depende da fidelidade ao chefe para
pagar a renda de casa. Uma insubordinação custar-lhe-á o cargo e, como nunca
trabalhou na vida, terá, pela primeira vez, que procurar trabalho.
Deveremos adoptar um
regime de impedimentos, e não de incompatibilidades. Por princípio, nada há de
mais nobre do que servir a República e, por isso ninguém deverá ser impedido de
o fazer. Se um deputado trabalha na sua vida profissional para a indústria
farmacêutica, tem toda a legitimidade para discutir uma proposta de lei no
âmbito da defesa ou da agricultura. Se estiver em discussão uma proposta sobre
o medicamento, poderá com propriedade discuti-la, visto que possui competências
técnicas para o fazer. Porém, declarou, ao assumir o cargo, um registo de
interesses entre os quais, no caso em concreto, que possui interesses naquela
indústria. Se, da aprovação daquela lei, em concreto, puder resultar alguma
espécie de vantagem para a sua empresa ou para os interesses que
profissionalmente representa, o deputado deverá ser afastado da votação e
substituído por outro que não tenha esse impedimento. Deste modo, a política
atrairá os melhores cidadãos e não os mais ambiciosos. Com os melhores, melhor
será, também, a nossa democracia.
DA ECONOMIA
A campanha eleitoral de
1991 nos Estado Unidos foi dominada pelo slogan de Bill Clinton – que viria a
vencer as eleições – It’s the economy,
stupid!, que quer dizer, numa tradução muito livre, “não vês que tudo se
resume à economia?” Esta assunção de que toda a política de pouco vale se a
economia não estiver a funcionar em velocidade de cruzeiro e as pessoas não
tiverem dinheiro no bolso, foi bem verdadeira então e é bem verdadeira agora.
De facto, na altura, o presidente recandidato George H. Bush (pai) acabara de
obter, no plano interno, uma prestigiante vitória militar no Iraque, mas a
economia doméstica estava de rastos, razão pela qual perdeu as eleições. De
pouco lhe valeram os louvores patrióticos; o que o povo quer são dólares na
carteira.
Assim, devemos olhar
para a economia como o meio de nos tirar da crise. Atenção, pois à economia.
Que modelo económico
adoptar?
Quando nos pomos ao
caminho, convém saber para onde e por onde vamos, para não nos perdermos nem
nos enredarmos em labirintos dos quais não consigamos sair. Também aqui
deveremos saber que economia queremos. Deixemos de parte, desde logo
considerações teóricas sobre ideais de modelos económicos. O que pretendemos
com definição de modelo é dizer que o actual modelo baseado na dicotomia
crescimento/recessão, à qual fazemos a associação psicológica prazer/dor, não
tem sentido. Deveremos, na nossa modesta e irrelevante opinião, esquecer
tacticamente o PIB e o seu crescimento e concentrarmo-nos num modelo que
designaremos por “desenvolvimento sustentável”, isto é, um modelo qualitativo,
por oposição ao modelo de crescimento perpétuo, que é um modelo quantitativo.
Este modelo tem por
base, não um PIB, o da economia, mas sim um somatório de PIB’s: o PIB da
educação, o PIB da saúde, o do empreendedorismo, o das infraestruturas, o PIB
da cultura, o PIB da pobreza, da desigualdade, da inovação científica, etc. Em
cada um destes e outros indicadores, medem-se parâmetros quantitativos, desde o
número de mortes por doenças infecciosas no PIB da saúde ao número de espectadores
que vão ao teatro no PIB da cultura, passando pela média nacional de exames de
português no PIB da educação ou o número de patentes registadas no PIB da
inovação. A soma de todos estes PIB’s irá dar o PIB global de desenvolvimento.
Se o PIB económico de que hoje somos escravos não for satisfatório, mas os
outros, sim, poderemos então mudar o nosso “chip” psicológico e sentir prazer
em vez de dor. Mas, o mais certo é que, se os outros PIB’s avançarem, o PIB
económico também avance.
Critérios: Não é preciso
inventar fórmulas complicadas e perder demasiado tempo a discorrer sobre
modelos teóricos. Existem, hoje em dia, modelos já testados que, se forem
usados sem preconceitos e em conjunto, podem ser úteis para a adopção deste
modelo proposto de “desenvolvimento sustentável orientado para a qualidade”.
Uma das fórmulas que
pode ser usada com proveito é a utilizada pelo Fórum Económico Mundial, mais
conhecido pelo “Fórum de Davos”, em virtude de organizar todos os Invernos
naquela cidade suíça um encontro de líderes mundiais, visto por alguma esquerda
pateta como um fórum de capitalistas e especuladores. Antes de afastarmos
preconceituosamente esta fórmula, convém saber como é elaborado o documento
essencial desta organização, o “Relatório anual global para a competitividade”.
Devemos, antes de tudo,
dizer (como aliás já referimos supra) que a competitividade não se confunde com
competição e que a performance económica dos países não se resume a um concurso de
beleza ou uma corrida de cavalos. Façamos por extrair a testoesterona deste
conceito. Há espaço para todos e todos podem ser competitivos. Este documento
mede a competitividade relativa das economias em doze “pilares”: os quatro
primeiros referem-se aos “requisitos básicos”, os cinco seguintes, poderemos
designá-los por “potenciadores de eficiência” e os dois últimos, “factores de
inovação e sofisticação”, num total de 111 indicadores quantitativos. Estes
pilares ou parâmetros têm diferentes importâncias consoante o estádio de
desenvolvimento económico dos diferentes países. Para os países pouco
desenvolvidos, os quatro primeiros pilares valem 60% e os dois últimos, 5%, ao
passo que para os mais desenvolvidos, entre os quais se encontra o nosso país,
esses primeiros quatro valem apenas 20% mas os últimos dois, 30%.
Outro documento
importante é o “Índice de Desenvolvimento Humano”, primariamente focado na
medição da pobreza, mas que possui indicadores quantitativos que nos podem dar
pistas para o desenvolvimento sustentado. Este documento é alvo de muitas
críticas, por vezes ferozes, mas tem a virtualidade – sobretudo, se for usado
em conjunto com outros – de mostrar a realidade quanto a este aspecto
fundamental do desenvolvimento que é a pobreza. E não se diga que este é um
problema apenas do terceiro mundo. A pobreza aniquila as hipóteses de
desenvolvimento sustentado de uma nação ou região. A riqueza de um país mede-se
pela sua pobreza: é rico o país que, tendencialmente, não tem pobres. Rico não
é um país pleno de recursos como o petróleo, ouro, diamantes ou vastas
extensões de terra arável ou mar; rico é o país em que a pobreza é residual e
onde o capital humano é incluído, aproveitado e rentabilizado. Converter a
pobreza de liability (encargo, fardo)
em asset (proveito, mais valia), eis
a chave para o desenvolvimento. Cada pessoa resgatada da pobreza é uma pessoa a
menos como dependente e uma a mais como contribuinte, uma a menos que drena a
riqueza e uma a mais que produz riqueza. O combate à pobreza deve fazer-se, não
por piedosa comiseração ou alívio de consciência, mas deve ter um objectivo
puramente económico: Converter geradores de despesa em geradores de valor.
Estes documentos e
porventura outros, quando conjugados, utilizados sem preconceitos e
sistematizados, deverão dar a um bom governo as pistas para a elaboração de um
bom programa de governo. Saber como governar, onde produzir impacto, ter uma
estratégia e visão prospectiva e proactiva em vez de reactiva. Governar não é
reagir a notícias ou entrevistas, não é fazer oposição à oposição, não é tomar
medidas, quantas vezes avulsas, redundantes ou contraproducentes em reacção a um
facto político ou a um aspecto particular que é do interesse de um lobby ou de um conjunto de interesses
difusos. Governar é decidir, é escolher entre os interesses em conflito. A
acção humana é determinada por interesses. Todos nós, diariamente, resolvemos
conflitos de interesses. Governar é, pois, decidir quem vence nesses conflitos.
Só uma decisão estratégica, sistematizada, que tem a visão de conjunto e olha
para o futuro, informada e conhecedora, é uma boa decisão. Se um governo – o
bom governo – traçar como estratégia, a de melhorar dramaticamente os
parâmetros em que a nossa classificação é má, e procurar manter ou melhorar
aqueles em que a nossa performance é boa, os resultados globais da governação
só podem ser bons. Se os PIB's do ambiente, da pobreza, da saúde, da cultura, da
ciência, da solidariedade, da educação, da segurança e bem assim todos os
outros crescerem, o PIB da economia, sem que estejamos focados nele, também
crescerá. Teremos assim uma sociedade e uma economia mais desenvolvidas, não
porque temos crescimento, mas porque o crescimento serve e é consequência do
desenvolvimento.
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