terça-feira, 4 de junho de 2013

Capítulo 5 (início)

Soluções para a economia e as finanças.

CAPÍTULO 5
AS OMELETES E OS OVOS

    Toda esta bela poesia que vimos desfiando é muito bonita, mas como poderemos dar impulso à economia sem meios? Dizer que é preciso criar riqueza e emprego, pugnar pelo desenvolvimento, tudo isso está muito certo, mas para que a economia funcione é preciso dinheiro, e muito. Onde está o dinheiro?
    Portugal é um país endividado. O serviço da nossa dívida soberana será de pouco menos de oito biliões de euros em 2013, mais de oito biliões em 2014 e cerca de nove biliões em 2015. Estes valores não correspondem à dívida, mas sim apenas ao serviço da dívida, ou seja, aos seus juros e encargos. Nada disto é novo. Todos os países têm despesas com o serviço da dívida, é normal. Porém, no nosso caso, como não criamos riqueza para suportar estes e outros encargos, cada vez nos empobrecemos mais quando pagamos e cada vez mais temos dificuldade em pagar. Na verdade, satisfazemos os credores à custa da nossa crescente pobreza, isto é, à medida que vamos pagando, vamos ficando mais pobres. Este quadro é o pior que pode acontecer a um devedor: saber que, quanto mais paga, mais perto fica da incapacidade de pagar. Mas também é assustador para o credor: este sabe que o incumprimento definitivo é apenas uma questão de tempo e se aproxima cada vez que o devedor cumpre; não se trata de saber se o devedor vai ou não pagar, apenas aguarda o momento em que os pagamentos vão cessar. O cenário é muito claro: Quanto mais pagamos, mais pobres ficamos e, quanto mais pobres ficarmos, mais nos aproximamos do dia em que não teremos dinheiro para pagar. E como este receio aumenta, os juros sobre a dívida aumentam. E como estes aumentam, a dívida total aumenta. É um pesadelo que parece não ter fim.

    Chapter 11

    Passamos a resumir de uma maneira muito simples este procedimento na lei americana da recuperação de empresas. Quando uma empresa está em actividade, é viável, produz bens ou serviços que têm procura no mercado, factura, porventura até tem lucros, mas todo o esforço da sua actividade é consumido pela sua dívida, vai ao Tribunal e invoca o “chapter 11”. Pede, em suma, ao juiz que proíba os credores, durante um certo período, de exigir o pagamento da dívida. A empresa apresenta um plano pelo qual demonstra que, se os credores, por um momento, deixarem de respirar sobre o pescoço da empresa, esta irá refocar-se naquilo que deve fazer, ou seja, criar valor, e toda essa criação de valor será orientada para o investimento, de modo a que a empresa crie mais valor num futuro próximo. Quando estiver a facturar mais e a lucrar mais, então aí já estará em condições de, sem sacrificar a sua sobrevivência, poder retomar os pagamentos aos credores. De ordinário, os Tribunais costumam conceder esta prerrogativa às  empresas, e os credores costumam aceitar esta solução, porque sabem que esta é a melhor forma de reaver o seu crédito. É serem pagos, não à custa da pobreza mas sim à custa da riqueza do devedor.
    Claro está que esta solução legal pressupõe uma cultura empresarial e um conceito de crédito e dívida que estão a anos luz da nossa. Não nos podemos esquecer que, entre nós, vigora um código civil que é um repositório do oitocentista Código de Seabra, que por sua vez vai beber ao Code de Napoleão. É o direito civil burguês, triunfante da Revolução Francesa em todo o seu esplendor. E visa, em toda a linha proteger a santíssima trindade burguesa: O pai de família, o proprietário e o credor, que convergem muitas vezes, como o Deus que é simultâneamente trino e uno, numa única pessoa. Na visão do legislador, o credor é a vítima e o devedor, o vilão. Este último é diabolizado, ao passo que o primeiro tem permissão para persegui-lo até ao inferno. Quão diferente é o modo de ver no outro lado do atlântico. O contrato de crédito é apenas um contrato como qualquer outro. Credor é o que empresta, devedor é o que pede emprestado. Como qualquer contrato, ambas as partes tiram proveito dele, mas também vêm os seus riscos repartidos. O risco do credor consiste em não reaver, em todo ou em parte, o seu dinheiro, ao passo que o risco do devedor é o oposto, ou seja, o de não conseguir pagar. Para prevenir os respectivos riscos, ambos fazem a análise de risco que acaba por determinar o preço a pagar (o preço do risco) e por ventura seguram esse mesmo risco, seja pela prestação de uma garantia lateral que possa rápida e eficazmente ser executada, quer pelo resseguro do risco. Os bens pessoais do devedor ficam de fora desta equação, quando se trata de créditos comerciais, isto é, entre empresas. É a própria lei que, deste modo, protege a iniciativa empresarial e a liberdade de empresa. De outro modo, o empreendedor seria perseguido pelo credor para além do risco assumido em nome, por conta e no interesse da empresa e ficaria impedido de voltar a formar outra empresa. E como toda a gente sabe nos Estados Unidos, o mais comum é que um grande empresário com muito sucesso já tenha na sua história pessoal uma ou várias falências anteriores. Claro está que o conceito de “honra” está absolutamente desligado destas matérias. No nosso país, o devedor deve “honrar” a sua dívida. Se pediu emprestado para impulsionar a sua empresa, é justo que perca a sua casa e a sua família e fique a morar na rua, desde que “honre” o pagamento da sagrada dívida. Este é mais um conceito estúpido de que nos temos que desembaraçar. O crédito é apenas e só um reles negócio que nada tem a ver com a honra das pessoas.

    Renegociar a dívida

    Esta solução tem sido apresentada pela esquerda de protesto como a única solução. Compreende a negociação junto dos credores, dos prazos, juros e montantes da dívida, bem como o perdão parcial desta. A esta negociação pode dar-se também o nome de reescalonamento ou reestruturação da dívida. O objectivo é permitir que a dívida e o sacrifício para pagá-la fique contido em limites aceitáveis e exequíveis, o que não deixa de ser positivo, por um lado. Por outro, o reescalonamento admite o KO do devedor. Este entrega-se, reconhece que lhe é impossível pagar. Muito provavelmente, ficará anos sem crédito nos mercados e a sua moeda ou os seus activos e reservas sofrerão uma acentuada desvalorização.
    Ora, e à semelhança do “chapter 11”, o que humildemente propomos é uma moratória, e não um reescalonamento da dívida, bem sabendo, infelizmente, que, se essa moratória não for conseguida em tempo útil, o reescalonamento perfila-se no horizonte como inevitável. É a diferença entre tratar uma ferida a tempo e sarar a perna ou deixar que a ferida gangrene e ter como única opção amputar a perna para salvar a vida.

          
    Moratória.

    Que solução é esta?             
    A moratória consiste numa declaração do governo do país, com ou sem o acordo dos credores, que durante um determinado período, não pagará juros nem encargos nem irá financiar-se no mercado para repor a dívida entretanto vencida, e que usará esse dinheiro para investir na economia do país. No nosso caso, se declararmos uma moratória por três anos, conseguiremos vinte e cinco biliões de euros para a economia. Os credores que seriam pagos em 2014, serão pagos em 2017, os de 2015 em 2018, e assim por diante. Se a moratória for negociada com os credores, o que é preferível, estes poderão trocar os seus títulos de dívida por outros, de maior maturidade. A dívida e os respectivos encargos, será paga. O devedor não se entrega, qual Egas Moniz, de corda ao pescoço, não. Diz, de cabeça erguida, aos seus credores que, de momento, está demasiado pobre e fraco para poder pagar. Vai reestabelecer-se, ficar mais forte e mais rico e então poderá pagar sem esforço (ou com menos esforço) a sua dívida. Os credores compreenderão que não receber hoje é o preço a pagar para terem um devedor forte e cumpridor amanhã.
    Esta opção não está nem nunca esteve em cima da mesa porque os governos pura e simplesmente não a consideram. Têm inseridos no cérebro o “chip” da honra/vergonha associados ao cumprimento/incumprimento da dívida. Têm medo das inculcações associadas a uma qualquer espécie de incumprimento; medo de nunca mais poder voltar aos mercados para se financiarem, medo de nenhum banco ou instituição financeira voltar a financiar a banca ou a economia do país, medo de “riscos sistémicos”, com falências em catadupa de bancos, imaginando que no dia seguinte, milhões de pessoas irão acorrer aos bancos para retirar as suas poupanças. Não agem por medo a consequências que desconhecem, preferindo conformar-se com as consequências da austeridade e da recessão que conhecem. O medo do desconhecido é mais forte do que agir, e não fazer nada é mais confortável que fazer alguma coisa. Perante uma tempestade mortífera, entre fugir e enfrentar a fúria dos elementos e ter a possibilidade de morrer ou sobreviver, preferem agachar-se e esperar uma morte certa. Faltam duas característica essenciais, tão arredadas das lideranças actuais: Saber o que deve ser feito, não importando as consequências; ousadia para o fazer. Abolir a escravatura era impensável nos Estados Unidos ou no Brasil, no séc. XIX, porque nela residia a base da economia; no entanto, aboli-la era a atitude certa, irrespectiva das consequências. Estamos hoje, face à dívida, numa encruzilhada semelhante.

    Mas, e a Troika?

    Estas soluções serão viáveis, exequíveis, visto que estamos sob resgate da Troika?
    Objecções: Ambas as opções – renegociar ou decretar uma moratória – são falsas soluções, sem viabilidade e inexequíveis. Estamos sob um programa de resgate, do qual não podemos sair. Rasgar o memorando com a “Troika” significaria fatalmente: a) Cair na bancarrota; b) Sair do Euro.
    Resposta às objecções: Mais uma vez, as instâncias europeias, a direita em geral e o actual governo em particular, bem como a desorientada esquerda da oposição (a comprometida com a “Troika”, está bem de ver) pretendem determinar o nosso destino colocando-nos perante estas duas falsas inculcações para que nos resignemos e aceitemos a austeridade e a pobreza perpétuas.

    A bancarrota

    Com efeito, são várias na direita, de ministros a comentadores, de jornalistas a deputados, as vozes que dizem que a Troika é o que nos separa da bancarrota e sem o seu dinheiro, não haveria como pagar salários, manter escolas e hospitais a funcionar, etc., ou seja, é o dinheiro da Troika que nos mantém à tona e sem ele seria o caos.
    Partindo do princípio que esta mentira é verdade, cabe perguntar então porque foram 78 biliões e não qualquer outro, o valor com que a Troika resolveu “ajudar-nos”, e, já agora, de onde é que esse dinheiro vem, como é aplicado e quando.
    Ora, o valor foi calculado tendo em conta: a) O período do resgate; b) As necessidades de recapitalização da banca; c) As necessidades que o Estado Português tinha para repor os pagamentos a credores face à dívida vencida no período de resgate. Na verdade, a razão pela qual foi pedido o resgate, se bem nos lembramos, foi a escalada dos juros. Foi-nos dito que, quando os juros atingissem 7% a 10 anos, não seria possível continuar a emitir dívida, que esse era o limite para pedirmos o resgate, que esse valor marcava a “linha vermelha” a partir da qual era insustentável emitir dívida, pois estaríamos a substituir dívida emitida a juros baixos por nova dívida a juros elevadíssimos.
    No fundo, e como o Estado Português iria, a partir dos 7%, substituir a dívida antiga por nova a valores insustentáveis, resolveu fazer uma única emissão a um único credor, à Troika, por um juro mais baixo (3,5 a 4,5%), mediante a contrapartida de executar um “programa de ajustamento” que tinha como objectivo fundamental reduzir a dívida soberana e o défice para valores que permitissem, de novo, o financiamento nos mercados a juros sustentáveis. O dinheiro da Troika é, pois, usado para repor a dívida à medida que esta se vence, em vez de ir ao mercado emitir dívida.
    Aproveitaram o ensejo para recapitalizar a banca. Para este efeito, calcularam em 12 biliões, a quantia necessária e suficiente para o fazer. Quanto às necessidades de reposição da dívida, o valor foi calculado em 66 biliões. Ora este valor acumulado de 78 biliões foi justamente o montante da “ajuda” da Troika.
    Cabe então perguntar, fazendo fé na verdade da mentira: Se dos 78 biliões, 66 servem exclusivamente para pagar aos credores internacionais e 12, exclusivamente para recapitalizar a banca, quanto sobra para pagar salários, manter a funcionar escolas e hospitais, etc.? Resposta: Zero! E zero é efectivamente o montante de dinheiro da Troika que é utilizado em tudo o que não sejam aquelas duas finalidades, credores e banca. É que, como qualquer ignorante bem sabe, os encargos do Estado (salários dos funcionários, equipamentos públicos como as tais escolas e hospitais, etc.) são pagos pelo… Orçamento do Estado! Ora, nem um cêntimo do dinheiro da Troika é transferido para o Orçamento de Estado, logo, nem um cêntimo vai para pagar os tais salários, escolas ou hospitais. É pura e simplesmente mentira que o dinheiro da Troika nos tenha salvo da bancarrota. São as receitas do Estado – em impostos, contribuições, rendas e juros, mais valias, etc. – que pagam as despesas, não o dinheiro da Troika.

    A saída do Euro

    Se não fosse a Troika, seríamos obrigados a sair do “Euro”, isto é, não fora a “ajuda”, e teríamos que abandonar a zona Euro. Esta é outra mentira que merece resposta pronta. Peguemos novamente na verdade da mentira e perguntemo-nos: Como é que se entra e como é que se sai da zona Euro?
    A “zona Euro” mais não é do que um tratado internacional, o Tratado da União Económica e Monetária. Para além do pré-requisito de pertencer à União Europeia, os Estados membros aderiram a este tratado desde que cumprissem os requisitos plasmados naquele instrumento, a saber, défice inferior a 3% e dívida soberana inferior a 60%, ambos do PIB do país. E dos 27, 17 aderiram ao Euro. E como, cabe perguntar? Sendo o “Euro” um tratado internacional, a forma jurídica da adesão é a seguinte: O governo de um Estado manifesta junto do depositário do tratado (que é um outro Estado ou, neste caso, uma organização internacional, a UE) a intenção de aderir ao tratado. O depositário afere se o Estado apelante preenche os requisitos para aderir o tratado e, em caso afirmativo, emite uma nota em conformidade. Depois, segue-se o processo de ratificação interna, que varia consoante o processo constitucional vigente em cada Estado. No nosso caso, a AR vota a ratificação do tratado e o PR promulga. Com a promulgação, o tratado passa a fazer parte integrante da Ordem Jurídica portuguesa como se fosse uma lei da AR e as normas nele constantes devem ser observadas, quer pela administração pública, quer pelos tribunais, como qualquer outra lei (princípio da legalidade).
    E como é que se sai de um tratado? Justamente, pela operação inversa. O governo de um Estado signatário de um tratado manifesta junto do depositário a intenção de abandonar o tratado. Esta intenção é ratificada pelo parlamento nacional que revoga a adesão anterior e esta revogação é publicada no jornal oficial, deixando, a partir dessa data, o tratado em questão de integrar a Ordem Jurídica interna.

    Concluindo: Seja para aderir, seja para revogar a adesão, é necessária e suficiente a vontade do Estado. Trata-se pois, de um mero acto de vontade de um Estado, pertencer ou não a um tratado. Ninguém pode ser obrigado a aderir, nem ninguém é “expulso” ou forçado a abandonar. De resto, o tratado em questão é tão cândidamente optimista que nem tem sequer nenhuma norma para excluir os Estados que não cumprirem os requisitos depois da adesão, bastando-se com procedimentos, inquéritos e multas para os eventuais prevaricadores. De resto, se, por violar as sacrossantas regras dos 3% e dos 60% supra aludidas, os Estados devessem ser expulsos, o Euro extinguir-se-ia porque, ao momento, nenhum país – nem mesmo a Alemanha – tem simultâneamente o défice e a dívida abaixo daqueles valores; todos os países da zona Euro têm ou um ou outro, ou ambos os limites ultrapassados. Ninguém nos pode obrigar a “sair” do Euro. Sairemos se quisermos, se não quisermos, não saímos.   

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