Do estado das coisas
Capítulo 5 (continuação)
Onde aplicar o dinheiro?
Dissemos acima, a
propósito da moratória, que o dinheiro que não é pago aos credores seria usado
para investir na economia. Como? Onde? Quando? Por quem? Com que objectivos? E
que resultados devemos esperar? Procuraremos responder a estas e outras
perguntas.
A propósito das falsas
soluções avançadas, quer pela direita, quer pela esquerda tradicional,
afirmámos que o investimento em obras públicas adjudicadas a grandes grupos
empresariais é uma receita estafada e reprodutora de dívida no futuro.
Ponhamos, pois, esta ideia de parte. Para sabermos onde e como investir,
torna-se necessário conhecer as nossas fraquezas e os nossos activos para
sabermos com o que contamos.
Ciclos de actividade
Um dos problemas que
enfrentamos nas crises é o facto de elas serem cíclicas. De tempos a tempos,
ultimamente, a cada década, há uma crise. Tudo vai abaixo e depois, passados
alguns semestres, tudo volta acima. Assim, um dos problemas a solucionar, do
ponto de vista do investimento, é que deveremos investir em segmentos que
tenham maturidades desencontradas, isto é, enquanto um sector de actividade vai
abaixo no decurso de uma crise, outros permanecem porque possuem uma curva de
longevidade muito maior que aqueles que quebram. Por outro lado, também importa
ter sectores de rápida recuperação. Em suma, uma economia inteligente e
sustentável é aquela que tem simultâneamente sectores de actividade com ciclos
curtos (um ano, dois anos) e ciclos longos (cinco anos, dez anos, vinte anos).
Quando sobrevém uma crise, uns sectores afundam, mas outros sustentam a
economia e o emprego. Deveremos, pois, gerir a nossa floresta de investimentos,
plantando espécies de árvores que crescem, umas ao fim de dez anos, outras ao
fim de vinte, outras, oitenta. Umas dão madeira, outras dão resina, outras
ainda dão frutos ou sementes, umas ardem facilmente e renegeram-se rapidamente
enquanto outras são resistentes ao fogo, umas necessitam de água abundante e
outras sobrevivem a longos períodos de seca, umas sofrem com temperaturas
extremas enquanto outras as suportam sem dificuldade. Este mix de investimento
em sectores diferenciados assegurará a sobrevivência durante as crises. Eis uma
das noções possíveis para a expressão “desenvolvimento sustentado”.
Conhecer os nossos
activos
Portugal possui
essencialmente dois activos: o seu território e o seu povo.
Território
Quanto ao primeiro, o
nosso território tem como principais vantagens:
- O seu posicionamento
geográfico, na extremidade ocidental da Europa, junto ao norte de África, é o
ponto mais próximo a partir do nosso continente quer da América do Norte, quer
da América do Sul. Alguns poderão dizer que somos periféricos: Periférica é a
Nova Zelândia, cujo continente mais próximo é a Antárctica, e que não obstante é
o 23º país mais competitivo do mundo, ao passo que nós somos o 49º.
- A sua costa marítima,
superior a 1000 km de extensão. A suíça não possui saída para o mar e é o 1º
país no ranking da competitividade.
- A qualidade e
extensão da nossa zona marítima económica exclusiva, abrangendo quer a
plataforma continental, quer as águas profundas do Atlântico.
- Os dois melhores
climas do mundo, o mediterrânico e o atlântico, respectivamente a sul e a norte
da bacia do Tejo. Não temos temperaturas extremas.
- Todo o território
está abrangido por bacias hidrográficas. Não temos desertos.
- Mais de 90% do nosso
solo é arável.
- Culturas autóctones
de flora e fauna, seja por exemplo, em castas de uvas, seja em raças de gado.
As nossas principais
desvantagens:
- Desordenamento geral
do território, com construção dispersa e de má qualidade e a consequente teia
complexa de redes de vias de comunicação, esgotos, água, electricidade,
telefónica, etc.
- A erosão acentuada
dos solos derivada sobretudo aos fogos florestais e ao abandono dos terrenos de
cultivo.
- A macro propriedade,
no sul, subaproveitada e semiabandonada, e a micro propriedade, no norte,
demasiado fragmentada para ser economicamente explorada com viabilidade.
- A poluição e a
contaminação de solos e águas, fruto do desordenamento e ausência de políticas
ambientais coerentes durante décadas e o muito que ainda há a fazer no que diz
respeito ao tratamento e armazenamento de resíduos sólidos e líquidos.
- A política de solos,
com a conversão de solos de reserva agrícola e ecológica em aptidão urbana, e
as consequências ambientais (para não falar nas económicas) que daí advêm.
- A ausência de
“corredores” significativos de reservas ecológicas que permitam reconstruir e
manter os habitats naturais para fauna e flora selvagens.
- A sobre exploração das
pescas e a poluição do mar e dos fundos marinhos.
Povo
O nosso povo apresenta
características que o distinguem favoravelmente de outros, como sejam:
- Um povo de uma só
“etnia”, apesar do caldo genético e cultural de que somos formados. Não há
entre nós clivagens de etnia ou raça. Portugal é um dos raros Estados-Nação do
mundo, ao contrário de estados plurinacionais como a Espanha ou pluriétnicos
como a Ex-Jugoslávia, que é Ex, justamente por causa da questão nacionalista e
étnica.
- Um povo de uma só
língua, uma só cultura e uma só “religião”. Muito embora sejamos um Estado
rigorosamente laico, mais de 90% dos portugueses professam a mesma religião e a
variação linguística não divide o país em línguas ou dialectos.
- A língua portuguesa é
uma das mais faladas, escritas e estudadas do mundo e está em franca expansão.
Perguntem aos húngaros se não gostariam de ter esta vantagem. Uma língua global
aporta vantagens económicas aos seus falantes.
- A adaptabilidade dos
portugueses. Os portugueses adaptam-se rapidamente às diferentes realidades,
são maleáveis, curiosos, inclusivos, ao contrário de vários povos do norte e
leste da Europa, por exemplo. O português aprende depressa, tem aptidão para as
línguas estrangeiras, estabelece rapidamente contacto com os outros e absorve
as culturas estrangeiras sem dificuldade.
- A inteligência
emocional e o espírito especulativo dos portugueses. Estamos focados na solução
dos problemas, arranjamos rápida e expeditamente solução para tudo, mesmo que
não seja a melhor ou a mais duradoura. Procuramos saber como se faz, somos
“desenrascados”, temos boa capacidade de improviso, somos criativos.
- O desenvolvimento de
um “saber- fazer” que nos é próprio, bem como a especialização em determinados
sectores de actividade.
Um povo com qualidades
não está, porém, isento de defeitos:
- Somos melancólicos,
saudosistas, fatalistas. Falta-nos voluntarismo e optimismo e somos um pouco
agarrados ao passado.
- Somos tendencialmente
indolentes e pouco “profissionais”, muito embora estes defeitos estejam hoje em
dia um pouco mais diluídos no nosso carácter. Referimo-nos à pontualidade,
assiduidade, cumprimento de prazos, etc.
- Somos pouco práticos,
escondemo-nos atrás dos formalismos. Somos burocráticos, antes de tomar uma
decisão são sempre necessários estudos, projectos, autorizações, pareceres,
etc.
- Falta-nos ousadia.
Somos adversos ao empreendedorismo. Os empresários são olhados com
desconfiança. O objectivo dos jovens nunca é criar a sua
própria empresa, antes arranjar um bom emprego onde “encaixem” bem e, de
preferência, fiquem lá, confortáveis, para o resto da vida.
- A pretexto de
pretendermos uma organização perfeita, a organização, quer do nosso Estado,
quer das nossas empresas, deixa muito a desejar. A desorganização, o laxismo, o
botabaixismo, a negligência, os interesses egoísticos imperam. Alguns serviços
do Estado (os tribunais, por ex.) têm uma organização arcaica, de um amadorismo
confrangedor. Outros, com tantas directivas e procedimentos, são rígidos e
formalistas. Há pouca ou nenhuma inovação e responsabilização organizacional e
falta-nos o sentido comunitário. Nem as empresas estão focadas no cliente, nem
os serviços do Estado, no utente.
Tendo em conta estes
activos, e considerando as suas vantagens e desvantagens, onde, isto é, em que
áreas investir?
Identifiquemos cinco
áreas:
Investigação e desenvolvimento
Esta área tem as
seguintes características que aproveitam os nossos activos e se enquadram nos
objectivos previamente definidos:
- Ciclo de longa duração. Os resultados na ID podem demorar anos
a chegar. Um projecto de investigação, se devidamente planeado e financiado,
atravessará incólume por períodos quer de crescimento, quer de recessão.
- Aproveitamento de recursos humanos qualificados e com ligação
quer à indústria, quer à universidade.
- Aplicação do output gerado a outros sectores da economia
(indústria e serviços, agricultura, saúde, educação, etc.).
- Área potenciadora de internacionalização e sofisticação
empresarial.
- Aporta massa crítica, quer à comunidade científica e técnica,
quer à comunidade empresarial.
Agricultura e pescas
Definiríamos com mais
acuidade esta área como a exploração sustentada dos recursos naturais, quer
terrestres, quer marítimos. Significa isto a exploração das florestas, o
cultivo dos solos e a exploração sustentável dos recursos piscícolas, bem como
o aproveitamento das nossas características excepcionais para a aquacultura.
Esta agricultura não deverá ter nada a ver com a tradicional agricultura de
(in)subsistência. Os agricultores deverão ser empresários agrícolas que tomam a
terra como um activo a partir do qual se cria valor. A tecnologia e o estudo
científico devem prevalecer sobre a ignorância e os maus costumes. Esta área
apresenta as seguintes vantagens:
- O apelo à mão de obra
local recentra as populações e impede a desertificação do interior.
- A interacção com as
indústrias de ID.
- O aproveitamento do
“saber-fazer” ancestral agora adaptado e tecnologicamente enquadrado, bem como
o potenciar das nossas fauna e flora endógenas.
- Os ciclos quer curtos
(um ano) ou longo (vários anos) consoante o tipo de exploração, permitem a
coexistência de ciclos desencontrados que sobrevivem às crises e delas
recuperam rapidamente.
- O crescimento da
produção silvícola, agrícola e piscícola permitem reduzir substancialmente as
importações e repor as nossas reservas estratégicas alimentares.
- Reposição do
ordenamento, recuperação da saúde dos solos, reposição de áreas ardidas, menos
exposição à erosão, reposição de fauna e flora selvagem por meio de uma gestão
sistematizada e coerente do espaço.
Ambiente e energias
renováveis
Esta área de actividade
é das que potencialmente mais pode crescer, visto que muito, quase tudo, está
por fazer. Vantagens:
- Interacção com as
indústrias de ID.
- Uso de mix de mão de
obra, quer intermédia, para tarefas de execução, quer especializada.
- Intervenção decisiva
na recuperação ambiental (descontaminação de solos, águas, requalificação de
habitats, repopulação de fauna e flora selvagens, etc.).
- Reordenamento do
território em estreita cooperação com as políticas agrícolas.
- Aproveitamento das
extraordinárias e diversificadas aptidões do território para a produção de
energias limpas, renováveis e baratas, que permitem o equilíbrio da nossa
balança energética e a reposição das nossas reservas estratégicas.
- No que concerne à
política energética, mudança de um conceito de macro-redes de distribuição,
mega produtores e consumidores passivos, para micro-redes de distribuição,
micro-produtores e consumidores activos (simultâneamente consumidores e
produtores), com a consequente poupança em recursos e diminuição da pegada
ecológica.
- Tratamento e
reaproveitamento económico dos resíduos.
Indústria
manufactureira
A quarta área de
actividade consiste na nossa produção industrial tradicional. Englobamos nesta
área as produções de subsectores como os derivados da cortiça; a marroquinaria
e calçado; têxtil e moda; cristalaria, vidraria e porcelana; metalurgia e
química aplicados à indústria. Vantagens no investimento nesta área:
- Interacção com as
indústrias de ID.
- Aproveitamento de
matérias primas provenientes do sector primário.
- Mix de mão de obra,
com destaque para a necessidade de aplicação de mão de obra intensiva
intermédia, o que absorve a população activa com qualificações médias.
- O dimensionamento das
unidades produtivas ajuda a estabelecer comunidades locais pujantes e combate a
desertificação do interior.
- Aproveitamento do
“saber-fazer” adquirido ao longo de décadas.
- Reequilíbrio do peso
da indústria face aos serviços no contexto da economia nacional.
- Sector potencialmente
exportador, o que melhora a balança comercial e reduz o endividamento
externo.
- Unidades de “nova
geração”, ambientalmente conscientes e energéticamente eficientes.
Cultura e turismo
Esta última área tem
grande potencial, porquanto o nosso povo possui uma cultura própria, rica e
vasta, muito apreciada pelos que nos visitam, e o nosso território tem
extraordinárias potencialidades turísticas e culturais. Vantagens:
- Aproveitamento da
paisagem e do clima, das infraestruturas de qualidade, da cultura local.
- O investimento na
cultura e nas artes potencia o desenvolvimento de indústrias ligadas quer à
produção manufactureira, ao restauro e à recuperação do património cultural
construído e dos acervos existentes, quer no ensino, na produção de actividades
culturais (música, teatro, dança, etc.).
- Mix de mão de obra,
sobretudo nos sectores da educação e ensino artísticos.
- Melhoria dramática da
massa crítica e da sofisticação da população em geral.
- O turismo é
determinante para a captação de investimento estrangeiro.
- Exportação da imagem
do país, o que, por sua vez potencia mais investimento estrangeiro.
Identificadas que estão
as principais áreas de actividade onde se deve concentrar o investimento,
nenhuma outra área fica porém arredada de cuidados e atenção; apenas
pretendemos enfatizar as áreas em que o investimento pode ser mais reprodutivo,
tendo em conta as nossas necessidades e potencialidades.
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