quarta-feira, 19 de junho de 2013

CAPÍTULO 6 REFORMA DO ESTADO

O panfleto de Camilo Castelo Negro debruça-se agora sobre a famosa reforma do Estado.





CAPÍTULO 6  

REFORMA DO ESTADO

    Muito se tem falado na reforma do Estado. Para a direita e o seu governo, reformar o Estado consiste em despedir um certo número de funcionários até que a despesa com salários e encargos seja reduzida a um determinado montante consentâneo com a receita, para além de passar as funções públicas para a “iniciativa privada”, isto é, as empresas, os lobbys e outros grupos de pressão que financiam os partidos e as carreiras dos políticos que suportam o governo, por meio de concessões e privatizações. Há pois aqui uma vertente puramente contabilística, mas também outra, de cariz ideológico, para além da paga de favores, dizemos nós, já que as concessões e privatizações são muito transparentes, mas acabam sempre por ir parar às mesmas mãos. O que está absolutamente ausente desta reforma é a reforma propriamente dita, ou seja, a transformação de uma máquina burocrática, ineficiente e ineficaz numa administração pública moderna.
    Para a esquerda – e porque a visão estratégica também falha por completo – a reforma do Estado é um assunto tabu porque, no fundo, direita e esquerda convergem na noção de reforma, isto é, o corte do número de funcionários e de serviços públicos. Ora, para a esquerda, todos os postos de trabalho são sagrados, por maior que seja a sua redundância ou inutilidade e, por conseguinte, despedir seja sem quem for está fora de questão.
    Esta visão estreita e serôdia do que deve ser a reforma do Estado tem um denominador comum, quer à direita, quer à esquerda: a noção, seja esgrimida, seja velada, de que o Estado é demasiado grande e reformar só pode significar reduzir. Combatamos, pois esta posição, pensando para que serve um Estado moderno hoje.
    Longe vão os tempos, no século XIX do “Estado polícia” ou “guarda-noturno” cujo papel se resumia a assegurar funções básicas de soberania (polícia, forças armadas, representação diplomática, administração autárquica e colonial como representação do poder central), e prefigurar-se como observador neutral das forças em presença (“laisser faire, laisser passer”) enquanto os agentes económicos se dedicavam com denodo à rapina e à exploração de recursos e pessoas.
    Um Estado moderno é hoje, essencialmente, um prestador de serviços. A história ensinou às sociedades que nem tudo pode ser deixado às mãos dos cidadãos, uma vez que estes se determinam por interesses, sejam eles individuais ou colectivos. E como as ferramentas dos diferentes grupos de interesses são desiguais, desigual é também o resultado a que conduzem a vida em sociedade. O Estado tem, deste modo, e desde logo a tarefa essencial de assegurar a igualdade de oportunidades para todos e que ninguém possa abusar de alguma eventual posição dominante. O Estado deverá, pois, tratar os cidadãos em regime de igualdade material, isto é, tratar de modo igual o que é igual, e diferente o que é diferente, municiando assim todos com o mesmo conjunto básico de ferramentas, suprindo a falta destas nuns casos e disciplinando o seu eventual uso abusivo noutros.
    Para assegurar o êxito desta tarefa, há que garantir a todos os cidadãos um conjunto de serviços básicos, de modo a que todos gozem das mesmas condições para o sucesso, à partida.
    Assim, cabe ao Estado conceber, construir e manter uma rede de infraestruturas, vias de comunicação, redes de energia e água, etc., de modo a que se possa esbater a desigualdade geográfica e o acesso a bens essenciais como a energia, a água ou os transportes.
    Depois, o Estado deve assegurar a existência de uma rede escolar pública de qualidade e referência, de maneira a que todos tenham, pela educação, a oportunidade de realização pessoal e profissional.
    Na senda da educação, deve o Estado assegurar a todos, também, um serviço de saúde universal, de qualidade e referência, gratuito ou tendencialmente gratuito, de modo a que o mais precioso bem do ser humano, a sua saúde e, em última análise, a sua vida, não dependam do seu rendimento, sob pena de termos um país para os que têm e outro para os que carecem de rendimento. A ruína e a miséria (e, em última instância, a vida) não podem estar à distância de um diagnóstico. 
    Finalmente, o Estado deverá assegurar a existência de um sistema obrigatório de pensões e outras prestações sociais, de modo a que ninguém se veja privado de uma subsistência digna quando deixar de poder prover autonomamente ao seu sustento e cair assim, na dependência de terceiros.
    São estes, pois – à parte as funções de soberania aludidas supra – os quatro pilares fundamentais de um Estado moderno: Infraestruturas básicas, ensino público, serviço nacional de saúde, sistema de segurança social. Estes pilares asseguram, em primeiro lugar, a igualdade de oportunidades, em segundo, o acesso a bens fundamentais cujo gozo não pode ser coartado por razões de rendimento, em terceiro, a segurança de que todos os cidadãos gozam, aconteça o que acontecer em determinados momentos das suas vidas, de um conjunto essencial de bens e serviços, ou seja que o essencial estará sempre assegurado e o Estado não lhes falhará. Por último mas não em último, a mera existência deste conjunto de bens e serviços fundamentais molda o sentido comunitário; pelo facto de vivermos num país cujo Estado assegura estes bens públicos, pertencemos a uma determinada comunidade, somos uma nação solidária e fraterna, mais do que um mero conjunto de indivíduos.
    Para além destas tarefas fundamentais, existem outras, aliás plasmadas na nossa Constituição e que decorrem dos direitos, liberdades e garantias conferidos a todos os cidadãos, agora nos planos, económico, social e cultural.
    Porém, reformar o Estado implica responder correctamente à seguinte pergunta: Como deveremos perspectivar a prestação destes bens e serviços públicos no futuro, conjugando, por um lado, a necessidade da sua prestação com qualidade e plenitude e, por outro com a sua sustentabilidade económica?
    Comecemos por responder com duas perguntas: Primeira, devemos abdicar de algumas destas tarefas, em parte ou em todo, se não tivermos os recursos necessários para financiá-las? Ou, noutra formulação, devemos moldar os serviços prestados ao financiamento existente? Segunda, devemos definir com rigor os serviços que o Estado deve prestar e gerir eficazmente esses serviços de forma a que os recursos disponíveis que aplicamos à sua realização sejam suficientes?
    Está bem de ver que a primeira pergunta é a formulada pela direita, e com a resposta pronta na ponta da língua, ao passo que a segunda, por ser mais evasiva, é a preferida da esquerda.
    Com efeito, a direita apressa-se a dizer que o Estado só deve poder prestar os serviços que possa pagar, pelo que devem ser os recursos disponíveis a definir o âmbito de actuação. Se o Estado puder, muito bem, se não puder, paciência. As competências do Estado acomodam-se à receita existente. É a visão orçamental do Estado. Este, tal como a dona de casa prevista, só deve gastar até ao limite do seu orçamento. Deve renunciar virtuosamente aos impulsos consumistas que vão para além da sua parca carteira, restando, nesse caso o “window shopping”, ou seja, olhar para os outros países onde os respectivos Estados prestam mais e melhores serviços, suspirar e dizer para com os seus botões: “Também eu gostaria de ter um vestido assim, mas não podemos porque não ganhamos para isso, paciência”.
    Já a esquerda responde com a segunda formulação. Sim senhor, o Estado deve prestar sem pestanejar os serviços que lhe estão atribuídos e pugna por uma gestão que se quer eficaz, de modo a cabimentar a despesa pública no orçamento. Claro está que não é possível, nunca é possível gerir eficazmente uma máquina tão pesada. Há a inércia, os interesses instalados, as práticas arreigadas, enfim, vamos tentando. Fora de questão mexer na máquina, nos interesses, nas práticas, já que a clientela política que parasita no Estado é muito importante para a sobrevivência quer de políticos de carreira, quer de partidos que têm no emprego público a sua base social de apoio. É preciso que tudo mude para que tudo fique na mesma.
    Nuns e noutros há pois o reconhecimento que é preciso reformar, mas em ambos transparece uma certa resignação, ainda que por diferentes motivações.

    Que reforma do Estado?

    Optemos decididamente pela segunda formulação, isto é, pela convicção de que o Estado deve levar a cabo as tarefas que lhe estão constitucionalmente atribuídas, e deve fazê-lo de forma plena, decidida e sem equívocos, mas aplicando à realização destes fins, o rigor, a eficiência e a eficácia de que vem carecendo a sua gestão.
    Assim, retiremos desde logo a ideia de que o Estado é demasiado grande. Tanto não é verdade o jargão da direita “menos estado, melhor estado”, nem será verdade o oposto, isto é, “mais estado, pior estado”. Entendamo-nos: o volume do Estado nada tem a ver com a qualidade do seu desempenho. Podemos perfeitamente ter um Estado pequeno e bom (o Canadá ou a Nova Zelândia), pequeno e mau (o Brasil, por exemplo, mas também em geral, os estados da América latina), grande e bom (A Suécia, bem como os outros países escandinavos) ou grande e mau (a lista é demasiado numerosa para exemplificar). É, uma vez mais o conceito qualitativo que deve sobrepor-se ao quantitativo, pelo que a gestão rigorosa, eficiente e eficaz deve, antes de mais, ser uma gestão de qualidade.
    Ora, gerir com qualidade implica fazer apelo a um conjunto de parâmetros que, uma vez articulados e coerentes entre si, darão corpo à vertente qualitativa que se pretende alcançar.
    Muitos defeitos tem a nossa administração pública. E esses defeitos serão mais visíveis, uns, menos, outros, consoante se analisem estes ou aqueles sectores. Porém, há um registo transversal por toda a máquina pública. O Estado é concentrado, é centralizado, é opaco, não é responsável. Como melhorá-lo? DDDR, ou seja, desconcentrar, descentralizar, democratizar, responsabilizar.

    Desconcentrar

    A nossa administração pública estrutura-se em círculos concêntricos. A hierarquia é longa e rígida, a delegação de poderes é quase inexistente, e quanto mais hierarquia houver, maior será a diluição de responsabilidades, já que cada responsável poderá sempre apontar o seu superior e encolher os ombros dizendo que se limitou a cumprir ordens. No fim do dia, compete ao chefe, ou ao ministro, decidir sobre tudo. São por demais conhecidos os episódios caricatos em que os jornalistas perguntam ao ministro pela situação de um determinado tribunal que está sem telefones porque a conta não foi paga, ou um certo centro de saúde que tem o elevador avariado por falta de manutenção, e os ministros respondem que estão a trabalhar no caso, como se de administradores do condomínio se tratassem. Esta cultura de concentração de poderes e de ausência de delegação de responsabilidades advém, por um lado, de uma histórica desconfiança do poder central face ao poder local e por outro, pela recusa do poder local em assumir responsabilidades, pois é sempre mais fácil atribuir as culpas a “Lisboa”. Por sua vez, “Lisboa” não confia em pacóvios, e assim se fecha um círculo em que a tomada de decisões se eterniza e quem as toma não conhece verdadeiramente os meandros do caso porque não está no terreno.
    Do nosso ponto de vista, torna-se necessário estruturar a Administração, de modo a que os problemas sejam resolvidos por quem tem conhecimento directo e local deles, e as decisões só devem “subir” na hierarquia, se a sua importância se justificar. A delegação de poderes e competências, bem como a sua respectiva responsabilização deve ser a regra e não a excepção, sem prejuízo da possibilidade de recurso em casos contados. 

    Descentralizar

    Por todo o país existem administrações regionais, delegações e subdelegações distritais e concelhias. O território tem uma determinada divisão no que concerne ao turismo, outra para a agricultura, outra ainda para a saúde, e outra para o ensino, e poderíamos alongar a descrição até à exaustão. Na prática, todos esses poderes dependem do governo, pelo que, não só este concentra, como vimos supra, o poder, mas também o centraliza. Uma vez mais é a desconfiança nos decisores locais, como se não houvesse incompetência ou corrupção no poder central, que motiva essa centralização do poder. Para termos um Estado eficiente que toma as decisões que se impõem em tempo útil e por quem as conhece, é necessário proceder a uma descentralização do poder. Os poderes centrais devem pensar e agir globalmente, os poderes locais devem pensar e agir localmente, com competência e responsabilidade.

    Democratizar

    Vivemos numa democracia plena. Ou não? Que legitimidade democrática têm as administrações regionais, as comissões coordenadoras, as delegações dos diferentes serviços? No fundo, têm uma legitimidade derivada ou reflexa. Não deveriam antes ter uma legitimidade directa? Porque razão são burocratas, os decisores políticos cuja actuação releva, e de que maneira, nas nossas vidas, sem que estes sejam responsabilizados ou se conheçam e se validem democraticamente as suas políticas?
    É imperioso que a administração pública seja democratizada e que os agentes decisores vejam o seu poder legitimado, de modo a poder reestabelecer-se a confiança entre o Estado e a sociedade. 

    Responsabilizar

    Esta última vertente decorre das anteriores. Um Estado concentrado, centralizado e opaco é também um Estado que, por mecanismos de auto legitimação, acaba por esconder e diluír a responsabilzação. Quando algo corre bem, logo o autarca e o ministro concorrem para a paternidade da ideia ou da obra. Quando algo corre mal, todos assobiam para o lado e empurram as responsabilidades de uns para outros, morrendo sempre a culpa, solteira.
    Torna-se necessário, pois, estatuír uma clara cadeia de responsabilização, de modo a que os cidadãos saibam a quem pedir contas.


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