O panfleto de Camilo Castelo Negro debruça-se agora sobre a famosa reforma do Estado.
CAPÍTULO 6
REFORMA DO ESTADO
Muito se tem falado na
reforma do Estado. Para a direita e o seu governo, reformar o Estado consiste
em despedir um certo número de funcionários até que a despesa com salários e
encargos seja reduzida a um determinado montante consentâneo com a receita,
para além de passar as funções públicas para a “iniciativa privada”, isto é, as
empresas, os lobbys e outros grupos de pressão que financiam os partidos e as
carreiras dos políticos que suportam o governo, por meio de concessões e
privatizações. Há pois aqui uma vertente puramente contabilística, mas também
outra, de cariz ideológico, para além da paga de favores, dizemos nós, já que
as concessões e privatizações são muito transparentes, mas acabam sempre por ir
parar às mesmas mãos. O que está absolutamente ausente desta reforma é a
reforma propriamente dita, ou seja, a transformação de uma máquina burocrática,
ineficiente e ineficaz numa administração pública moderna.
Para a esquerda – e
porque a visão estratégica também falha por completo – a reforma do Estado é um
assunto tabu porque, no fundo, direita e esquerda convergem na noção de
reforma, isto é, o corte do número de funcionários e de serviços públicos. Ora,
para a esquerda, todos os postos de trabalho são sagrados, por maior que seja a
sua redundância ou inutilidade e, por conseguinte, despedir seja sem quem for
está fora de questão.
Esta visão estreita e
serôdia do que deve ser a reforma do Estado tem um denominador comum, quer à
direita, quer à esquerda: a noção, seja esgrimida, seja velada, de que o Estado
é demasiado grande e reformar só pode significar reduzir. Combatamos, pois esta
posição, pensando para que serve um Estado moderno hoje.
Longe vão os tempos, no
século XIX do “Estado polícia” ou “guarda-noturno” cujo papel se resumia a
assegurar funções básicas de soberania (polícia, forças armadas, representação
diplomática, administração autárquica e colonial como representação do poder
central), e prefigurar-se como observador neutral das forças em presença
(“laisser faire, laisser passer”) enquanto os agentes económicos se dedicavam
com denodo à rapina e à exploração de recursos e pessoas.
Um Estado moderno é
hoje, essencialmente, um prestador de serviços. A história ensinou às
sociedades que nem tudo pode ser deixado às mãos dos cidadãos, uma vez que
estes se determinam por interesses, sejam eles individuais ou colectivos. E como
as ferramentas dos diferentes grupos de interesses são desiguais, desigual é
também o resultado a que conduzem a vida em sociedade. O Estado tem, deste
modo, e desde logo a tarefa essencial de assegurar a igualdade de oportunidades
para todos e que ninguém possa abusar de alguma eventual posição dominante. O
Estado deverá, pois, tratar os cidadãos em regime de igualdade material, isto
é, tratar de modo igual o que é igual, e diferente o que é diferente,
municiando assim todos com o mesmo conjunto básico de ferramentas, suprindo a
falta destas nuns casos e disciplinando o seu eventual uso abusivo noutros.
Para assegurar o êxito
desta tarefa, há que garantir a todos os cidadãos um conjunto de serviços
básicos, de modo a que todos gozem das mesmas condições para o sucesso, à
partida.
Assim, cabe ao Estado
conceber, construir e manter uma rede de infraestruturas, vias de comunicação,
redes de energia e água, etc., de modo a que se possa esbater a desigualdade
geográfica e o acesso a bens essenciais como a energia, a água ou os
transportes.
Depois, o Estado deve
assegurar a existência de uma rede escolar pública de qualidade e referência,
de maneira a que todos tenham, pela educação, a oportunidade de realização
pessoal e profissional.
Na senda da educação,
deve o Estado assegurar a todos, também, um serviço de saúde universal, de
qualidade e referência, gratuito ou tendencialmente gratuito, de modo a que o
mais precioso bem do ser humano, a sua saúde e, em última análise, a sua vida,
não dependam do seu rendimento, sob pena de termos um país para os que têm e
outro para os que carecem de rendimento. A ruína e a miséria (e, em última instância,
a vida) não podem estar à distância de um diagnóstico.
Finalmente, o Estado
deverá assegurar a existência de um sistema obrigatório de pensões e outras
prestações sociais, de modo a que ninguém se veja privado de uma subsistência
digna quando deixar de poder prover autonomamente ao seu sustento e cair assim,
na dependência de terceiros.
São estes, pois – à
parte as funções de soberania aludidas supra – os quatro pilares fundamentais
de um Estado moderno: Infraestruturas básicas, ensino público, serviço nacional
de saúde, sistema de segurança social. Estes pilares asseguram, em primeiro
lugar, a igualdade de oportunidades, em segundo, o acesso a bens fundamentais
cujo gozo não pode ser coartado por razões de rendimento, em terceiro, a
segurança de que todos os cidadãos gozam, aconteça o que acontecer em
determinados momentos das suas vidas, de um conjunto essencial de bens e
serviços, ou seja que o essencial estará sempre assegurado e o Estado não lhes
falhará. Por último mas não em último, a mera existência deste conjunto de bens
e serviços fundamentais molda o sentido comunitário; pelo facto de vivermos num
país cujo Estado assegura estes bens públicos, pertencemos a uma determinada
comunidade, somos uma nação solidária e fraterna, mais do que um mero conjunto
de indivíduos.
Para além destas
tarefas fundamentais, existem outras, aliás plasmadas na nossa Constituição e
que decorrem dos direitos, liberdades e garantias conferidos a todos os
cidadãos, agora nos planos, económico, social e cultural.
Porém, reformar o
Estado implica responder correctamente à seguinte pergunta: Como deveremos
perspectivar a prestação destes bens e serviços públicos no futuro, conjugando,
por um lado, a necessidade da sua prestação com qualidade e plenitude e, por
outro com a sua sustentabilidade económica?
Comecemos por responder
com duas perguntas: Primeira, devemos abdicar de algumas destas tarefas, em
parte ou em todo, se não tivermos os recursos necessários para financiá-las?
Ou, noutra formulação, devemos moldar os serviços prestados ao financiamento
existente? Segunda, devemos definir com rigor os serviços que o Estado deve
prestar e gerir eficazmente esses serviços de forma a que os recursos
disponíveis que aplicamos à sua realização sejam suficientes?
Está bem de ver que a
primeira pergunta é a formulada pela direita, e com a resposta pronta na ponta
da língua, ao passo que a segunda, por ser mais evasiva, é a preferida da
esquerda.
Com efeito, a direita
apressa-se a dizer que o Estado só deve poder prestar os serviços que possa
pagar, pelo que devem ser os recursos disponíveis a definir o âmbito de
actuação. Se o Estado puder, muito bem, se não puder, paciência. As
competências do Estado acomodam-se à receita existente. É a visão orçamental do
Estado. Este, tal como a dona de casa prevista, só deve gastar até ao limite do
seu orçamento. Deve renunciar virtuosamente aos impulsos consumistas que vão
para além da sua parca carteira, restando, nesse caso o “window shopping”, ou
seja, olhar para os outros países onde os respectivos Estados prestam mais e
melhores serviços, suspirar e dizer para com os seus botões: “Também eu
gostaria de ter um vestido assim, mas não podemos porque não ganhamos para
isso, paciência”.
Já a esquerda responde
com a segunda formulação. Sim senhor, o Estado deve prestar sem pestanejar os
serviços que lhe estão atribuídos e pugna por uma gestão que se quer eficaz, de
modo a cabimentar a despesa pública no orçamento. Claro está que não é
possível, nunca é possível gerir eficazmente uma máquina tão pesada. Há a
inércia, os interesses instalados, as práticas arreigadas, enfim, vamos
tentando. Fora de questão mexer na máquina, nos interesses, nas práticas, já
que a clientela política que parasita no Estado é muito importante para a
sobrevivência quer de políticos de carreira, quer de partidos que têm no
emprego público a sua base social de apoio. É preciso que tudo mude para que
tudo fique na mesma.
Nuns e noutros há pois
o reconhecimento que é preciso reformar, mas em ambos transparece uma certa
resignação, ainda que por diferentes motivações.
Que reforma do Estado?
Optemos decididamente
pela segunda formulação, isto é, pela convicção de que o Estado deve levar a
cabo as tarefas que lhe estão constitucionalmente atribuídas, e deve fazê-lo de
forma plena, decidida e sem equívocos, mas aplicando à realização destes fins,
o rigor, a eficiência e a eficácia de que vem carecendo a sua gestão.
Assim, retiremos desde
logo a ideia de que o Estado é demasiado grande. Tanto não é verdade o jargão
da direita “menos estado, melhor estado”, nem será verdade o oposto, isto é,
“mais estado, pior estado”. Entendamo-nos: o volume do Estado nada tem a ver
com a qualidade do seu desempenho. Podemos perfeitamente ter um Estado pequeno
e bom (o Canadá ou a Nova Zelândia), pequeno e mau (o Brasil, por exemplo, mas
também em geral, os estados da América latina), grande e bom (A Suécia, bem
como os outros países escandinavos) ou grande e mau (a lista é demasiado
numerosa para exemplificar). É, uma vez mais o conceito qualitativo que deve
sobrepor-se ao quantitativo, pelo que a gestão rigorosa, eficiente e eficaz
deve, antes de mais, ser uma gestão de qualidade.
Ora, gerir com
qualidade implica fazer apelo a um conjunto de parâmetros que, uma vez
articulados e coerentes entre si, darão corpo à vertente qualitativa que se
pretende alcançar.
Muitos defeitos tem a
nossa administração pública. E esses defeitos serão mais visíveis, uns, menos,
outros, consoante se analisem estes ou aqueles sectores. Porém, há um registo
transversal por toda a máquina pública. O Estado é concentrado, é centralizado,
é opaco, não é responsável. Como melhorá-lo? DDDR, ou seja, desconcentrar,
descentralizar, democratizar, responsabilizar.
Desconcentrar
A nossa administração
pública estrutura-se em círculos concêntricos. A hierarquia é longa e rígida, a
delegação de poderes é quase inexistente, e quanto mais hierarquia houver,
maior será a diluição de responsabilidades, já que cada responsável poderá
sempre apontar o seu superior e encolher os ombros dizendo que se limitou a
cumprir ordens. No fim do dia, compete ao chefe, ou ao ministro, decidir sobre
tudo. São por demais conhecidos os episódios caricatos em que os jornalistas
perguntam ao ministro pela situação de um determinado tribunal que está sem
telefones porque a conta não foi paga, ou um certo centro de saúde que tem o
elevador avariado por falta de manutenção, e os ministros respondem que estão a
trabalhar no caso, como se de administradores do condomínio se tratassem. Esta
cultura de concentração de poderes e de ausência de delegação de
responsabilidades advém, por um lado, de uma histórica desconfiança do poder
central face ao poder local e por outro, pela recusa do poder local em assumir
responsabilidades, pois é sempre mais fácil atribuir as culpas a “Lisboa”. Por
sua vez, “Lisboa” não confia em pacóvios, e assim se fecha um círculo em que a
tomada de decisões se eterniza e quem as toma não conhece verdadeiramente os
meandros do caso porque não está no terreno.
Do nosso ponto de
vista, torna-se necessário estruturar a Administração, de modo a que os
problemas sejam resolvidos por quem tem conhecimento directo e local deles, e
as decisões só devem “subir” na hierarquia, se a sua importância se justificar.
A delegação de poderes e competências, bem como a sua respectiva
responsabilização deve ser a regra e não a excepção, sem prejuízo da
possibilidade de recurso em casos contados.
Descentralizar
Por todo o país existem
administrações regionais, delegações e subdelegações distritais e concelhias.
O território tem uma determinada divisão no que concerne ao turismo, outra para
a agricultura, outra ainda para a saúde, e outra para o ensino, e poderíamos
alongar a descrição até à exaustão. Na prática, todos esses poderes dependem do
governo, pelo que, não só este concentra, como vimos supra, o poder, mas também
o centraliza. Uma vez mais é a desconfiança nos decisores locais, como se não
houvesse incompetência ou corrupção no poder central, que motiva essa
centralização do poder. Para termos um Estado eficiente que toma as decisões
que se impõem em tempo útil e por quem as conhece, é necessário proceder a uma
descentralização do poder. Os poderes centrais devem pensar e agir globalmente,
os poderes locais devem pensar e agir localmente, com competência e
responsabilidade.
Democratizar
Vivemos numa democracia
plena. Ou não? Que legitimidade democrática têm as administrações regionais, as
comissões coordenadoras, as delegações dos diferentes serviços? No fundo, têm
uma legitimidade derivada ou reflexa. Não deveriam antes ter uma legitimidade
directa? Porque razão são burocratas, os decisores políticos cuja actuação
releva, e de que maneira, nas nossas vidas, sem que estes sejam responsabilizados
ou se conheçam e se validem democraticamente as suas políticas?
É imperioso que a
administração pública seja democratizada e que os agentes decisores vejam o seu
poder legitimado, de modo a poder reestabelecer-se a confiança entre o Estado e
a sociedade.
Responsabilizar
Esta última vertente
decorre das anteriores. Um Estado concentrado, centralizado e opaco é também um
Estado que, por mecanismos de auto legitimação, acaba por esconder e diluír a
responsabilzação. Quando algo corre bem, logo o autarca e o ministro concorrem
para a paternidade da ideia ou da obra. Quando algo corre mal, todos assobiam
para o lado e empurram as responsabilidades de uns para outros, morrendo sempre
a culpa, solteira.
Torna-se necessário,
pois, estatuír uma clara cadeia de responsabilização, de modo a que os cidadãos
saibam a quem pedir contas.
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