Prossegue a publicação do panfleto de Camilo Castelo Negro.
Conclui-se o capítulo 3.
CRISE DO CAPITALISMO
Desde pelo menos 1848,
data do Manifesto Comunista, que o fim iminente do capitalismo está
profetizado, tendo já sido encomendadas coroas de flores para o seu enterro por
diversas ocasiões. Porém, a verdade é que o sistema que o haveria de
substituir, o comunismo, já nasceu, floresceu, definhou e morreu de septicemia,
ao passo que o capitalismo ainda continua. O capitalismo de hoje, no entanto, é
muito diferente do de oitocentos e também ele, tal como a democracia, não foi
inventado num laboratório mas antes é fruto de uma evolução histórica, com
avanços, recuos e contradições, como tudo o que é próprio da condição humana.
Também em 2008, os
analistas e filósofos se apressaram a vaticinar o fim do capitalismo,
argumentando estar este esgotado nas suas contradições e na sua perversidade e
maldade intrínsecas. Sem pretender fazer a sua defesa, permito-me apenas notar
que, segundo a teoria marxista, este “modo de produção” foi antecedido por dois
outros, o feudalismo e o esclavagismo. Pode ser difícil apontar o pior, mas
quanto ao melhor de entre eles, a escolha não deixa muitas dúvidas. Nunca, na
história da humanidade, houve um salto qualitativo tão grande em tão pouco
tempo, apesar de todas as contradições e atropelos que todos, unanimemente,
reconhecemos e do preço elevado que muitos, demasiados, tiveram que pagar.
Dito isto, e porque,
mais uma vez, o sistema não está ameaçado (porque não se vislumbra outro melhor
no horizonte para o substituir), estamos perante uma crise, sim, não do
capitalismo em si, mas dos valores do capitalismo. Sim, o capitalismo também
tem um quadro axiológico. Se até a máfia tem valores…
Se compararmos os dois
“modos de produção”, para utilizar a terminologia de Marx, do feudalismo e do
capitalismo, verificamos que o “core”, ou seja, o âmago do feudalismo reside na
propriedade da terra, ao passo que, no capitalismo, esse âmago está na
propriedade do capital, ou seja, do dinheiro. Senhor feudal é o dono das
terras; capitalista é o dono do dinheiro. Porém, o dinheiro, por si só, não tem
uma utilidade final. Podemos usar o dinheiro para comprar alimentos ou
remédios, mas as notas e as moedas não são comestíveis nem curam doenças. O
dinheiro, no capitalismo, só faz sentido se estiver “aplicado”, isto é se tiver
uma função reprodutiva. A uma ideia de negócio, junta-se um conjunto de
factores, chamados “factores produtivos”, entre os quais, instalações físicas,
matérias primas, mão de obra, etc. e produz-se um bem ou serviço que é vendido
no mercado por um preço superior à soma do valor de todos esses factores que concorreram para a sua produção. A
diferença, a margem, é o lucro, objectivo final da empresa.
Temos, assim, que, mais
do que o dinheiro, que é um mero meio, a empresa é que é o âmago do
capitalismo. O capitalista, mais do que o dono do dinheiro, é o dono da
empresa. Esta substitui a terra como o “core” do sistema.
SUBVERSÃO DOS VALORES
DA EMPRESA
Ora, até há algumas
décadas a esta parte, por definição, as empresas eram administradas pelos seus
donos, ou seja, pelos seus sócios ou accionistas. A crescente complexificação
da gerência, por um lado, e o distanciamento das gerações que herdaram, por
oposição às gerações que construíram as empresas, por outro, levaram à
introdução de um novo elemento neste quadro: o Manager ou gestor ou administrador
profissional. Ontem, o dono mandava; hoje, o dono contrata um profissional para
mandar por ele. Esta mudança no modelo de gestão levou à relativização dos
valores da empresa. Mas, quais são os valores da empresa, enquanto entidade a se, isto é, quais os valores
intrínsecos de uma empresa, de todas as empresas?
Em primeiro lugar, a
empresa aspira à perpetuidade, à continuidade. Há pois, um valor de perenidade
que é conatural às empresas, a vontade de deixar a empresa às gerações vindouras
e que o seu valor e importância cresçam com o passar do tempo. Uma empresa
funda-se para durar para sempre.
Um segundo valor
importante é o da relação com e do impacto na comunidade. Desde logo, na
comunidade interna, isto é, no conjunto de sócios ou accionistas, de
colaboradores e trabalhadores. Estes deverão assimilar a cultura da empresa,
isto é, o seu modo de ser e de agir e o seu posicionamento no mercado e na
comunidade empresarial. Os elementos afectos a uma empresa deverão senti-la
como sua, “vestir a camisola” da empresa e projectar na sua actividade diária
os valores e a missão da empresa. Depois, esse sentido comunitário deve
estender-se ao círculo de relações empresariais: com os fornecedores, com os
clientes, com outras empresas que trabalham em estreita relação, etc. Não só os
trabalhadores deverão sentir a empresa como sua, mas também os fornecedores e
os clientes deverão identificar-se com a empresa e assumir os seus valores.
Finalmente, a empresa deverá causar um impacto na comunidade em que se insere;
na localidade onde está sediada, na região, no país, até, globalmente, se
possível. As grandes empresas fundadas nos séculos XIX e XX tinham – e
algumas ainda têm – hospitais, bairros, centros culturais, clubes desportivos e
outras infraestruturas que testemunham o retorno que a empresa pretende
devolver à comunidade e que pode ser visto, por exemplo em empresas como a
Bayer, na Alemanha ou, entre nós, como era o caso da CUF. Este valor
comunitário é essencial para a empresa.
Em terceiro lugar, uma
empresa diferencia-se das demais pelo valor que aporta ao mercado através dos
bens que produz ou dos serviços que presta. Nisto consiste o seu traço
distintivo. Assim, os bens ou serviços de uma empresa deverão distinguir-se,
sobressair no mercado em função dos valores que representam: qualidade,
fiabilidade, relação preço/qualidade, durabilidade, design, inovação,
confiança, seriedade, credibilidade, prestígio, etc. Quando dizemos que
determinado bem, por exemplo, uma caneta é a “Rolls Royce” das canetas,
importamos para a caneta os valores de qualidade suprema que a marca de
automóveis goza no mercado, isto é, estamos a dizer que aquela é a melhor
caneta que o dinheiro pode comprar. Quando dizemos que um determinado hotel
funciona como “um relógio suíço”, estamos a transferir para o estabelecimento
hoteleiro os valores da indústria relogoeira suíça, isto é, queremos dizer que
tudo funciona na perfeição, sem falhas nem atrasos. Ora, estes valores que as
empresas transmitem ao mercado, por meio das marcas dos bens ou serviços que
fabricam, são valores fundamentais, quer para o seu valor de mercado (as
empresas valem aquilo que fazem), quer para a ancoragem dos valores intangíveis
que mencionámos antes, ou seja, a perenidade e o impacto comunitário,
intrínseco e extrínseco.
O que sucedeu nas
últimas décadas com o advento dos managers, isto é, dos gestores profissionais?
Estes gestores são, como acabámos de dizer, profissionais. Eles são contratados
para obter um determinado resultado. E este resultado é, invariavelmente, a
criação de valor para os seus sócios ou accionistas que são, no fundo, os seus
patrões. Enquanto managers, os valores intangíveis da empresa dizem-lhes pouco
ou nada, pois eles não são donos das empresas, apenas as gerem. E a noção de
tempo é muito diferente; para o dono da empresa, o horizonte é infinito, ao
passo que para o manager, o horizonte é a duração do seu contrato. Não há tempo nem sequer necessidade
de assimilar os valores da empresa. Hoje estão a gerir uma empresa, amanhã,
estarão a gerir outra, porventura concorrente da anterior.
Assim, todos os valores
que fazem parte do património da empresa são sacrificados à obtenção do lucro,
e quanto mais rápido e maior, melhor. É que os managers são pagos
essencialmente em função do resultado, isto é, a sua remuneração depende da sua
performance, visto que a parte significativa da sua remuneração consiste no
bónus ou comissão sobre os lucros obtidos, e a compensação pela saída da
empresa, também. Deste modo, os valores intangíveis das empresas são postos em
cheque quando estas contratam managers cuja função consiste em sobrepor o
resultado da sua gestão à frente e acima de todos esses valores. O resultado é
por demais conhecido: os managers empolam os lucros, escondem os prejuízos,
fazem investimentos arriscados com um retorno imediato mas com consequências
negativas para a empresa no longo prazo, tudo para apresentar rapidamente os
maiores resultados, pois serão pagos em função deles. Terminado o contrato,
recebem uma compensação choruda e partem para outra empresa, deixando a
anterior em chamas. Quem vier atrás, que apague o fogo. Empresas centenárias
que empregam milhares de pessoas, pagam milhões de euros em impostos e têm um
impacto determinante na sua comunidade são varridas do mapa em poucos anos por
CEO’s predadores que se comportam como uma praga de gafanhotos. Empresas que
sempre deram lucro e que poderiam continuar a dar muito lucro durante muito
tempo, são destruídas num par de anos pela ganância de um bónus chorudo. Eis a
consequência do falhanço dos valores.
Esta gestão predadora
das empresas, com as consequências nefastas que conhecemos, só é possível por
duas razões. Em primeiro lugar, os managers, por meio de mecanismos de auto
legitimação têm vindo, a pretexto da crescente complexidade da gestão, a
alterar os estatutos e a relação entre administração e accionistas, de modo a
blindar os seus poderes e impedir um escrutínio apurado da sua actividade por
parte destes últimos. Para os managers, os accionistas só servem para colocar o
capital, não precisam nem têm que se imiscuir na gestão da empresa. Podem e
devem confiar nos managers, pois estes estão na administração para dar aos
accionistas aquilo por que eles anseiam: os lucros. Em segundo lugar, a própria
posição dos accionistas, ao contrário do que sucedia antigamente, é efémera. As
grandes empresas mudam constantemente de mãos, as posições de capital detidas
pelos herdeiros dos fundadores é, na maior parte dos casos residual ou até, não
existente, e a maior parte do capital está dispersa por uma multidão de
pequenos accionistas que não estão interessados no valor da empresa, mas sim no
valor das acções que detêm. Assim que puderem realizar uma mais valia com a
venda das acções, não hesitarão em fazê-lo. As empresas perderam os seus
valores, o seu quadro de referências, o seu posicionamento na comunidade. Tudo
se resume ao lucro, mas não a um lucro qualquer, ao lucro de curto prazo. E
como não há valores, não há limites. Tudo serve para alcançar o lucro.
Esta crise de valores
na empresa estende-se também à crise de valores na comunidade. Não são só as
empresas que perderam os seus valores; os países e os povos também. A
aculturação global, formatada pela comunicação social e pelos conteúdos de
informação e entertenimento levam à perda de valores diferenciadores das
diferentes comunidades, países e povos.
Sem pretender, de modo
algum, abraçar as teorias “new age” da idade do Aquário, ou derivar este
discurso para a zona difusa das filosofias “zen”, a verdade é que, enquanto
comunidade global, perdemos o nosso contacto com a Terra e com a natureza,
perdemos a noção de tempo (só conta o hoje e o agora, o amanhã não interessa),
perdemos as nossas identidades específicas, encaramos com desconfiança os
nossos vizinhos, estamos sempre dispostos a identificar o perigo, mas nunca a
oportunidade, em suma, continuamos, apesar de termos hoje uma maior
consciência, a praticar os mesmos erros que as gerações que nos precederam sem
que aparentemente tenhamos aprendido com eles. Para quem tiver dúvidas sobre
esta problemática, basta ver o que acontece cada vez que a comunidade
internacional se reúne em conferências internacionais sobre as alterações
climáticas como Kyoto ou Copenhaga. Cada país ou região dedica-se empenhadamente
a defender egoísticamente os seus interesses mesquinhos e de curto prazo, sem
visão de conjunto, sem estratégia, sem liderança. As nossas indústrias
continuam a poluir, a produzir bens não necessários, a empolar custos
exorbitantes em bens de absoluta necessidade (os cuidados de saúde) ao passo
que adiam sistematicamente os investimentos em tecnologias não poluentes ou
acessíveis a um conjunto vasto de países e povos. Porém, o problema não reside,
como aconteceu no passado, na falta de informação, nem de meios tecnológicos ou
de recursos; nunca a sociedade foi tão informada, tão conhecedora e tão plena
de recursos como a contemporânea. Mas, porque faltam direcções, não sabemos
para onde e por onde ir. O momento é de encruzilhada. E podemos tomar boas ou más
decisões.
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