domingo, 12 de maio de 2013

Capítulo 2 do panfleto

A pedido de Camilo Castelo Negro, publico o capítulo 2 do seu panfleto.


CAPÍTULO 2
A RECESSÃO: E AGORA?
         
A DIREITA

    A direita fornece como solução para a situação actual, duas receitas que advêm dos seguintes pressupostos:

Primeiro: Sem disciplina das contas públicas, isto é, dívida soberana e défice abaixo de certos valores tidos por aceitáveis, não é possível ter a economia a crescer.

Segundo: Sem aumento da competitividade, não é possível termos uma economia capaz de enfrentar os mercados e os novos desafios globais, desde logo os mercados emergentes e a globalização.

    Partindo destes pressupostos, as receitas avançadas pela direita são as seguintes:
Para o primeiro problema, devem ser encetadas e prosseguidas políticas restritivas do investimento público e do consumo privado, de modo a melhorar a balança de pagamentos e a diminuir o défice. Menos gastos resultam em um saldo menor das contas públicas e, por conseguinte, um défice menor; menos investimento significa menos endividamento e menos consumo significa menos importações, logo, menos dívida soberana.
Crítica: Se é verdade que, em tese, estes postulados estão certos, não é menos verdade que os meios utilizados (menos investimento, menos consumo, diminuição do poder de compra, seja pelo aumento de impostos, seja pelo corte de salários, subsídios, pensões e prestações sociais) contêm em si efeitos perversos que contrariam o efeito desejado, isto é, resultam na diminuição do tecido empresarial e, por conseguinte produtivo, o que leva a uma diminuição da receita fiscal (menos activos e menos empresas a pagar impostos) e aumento da despesa social (mais desempregados e dependentes). O resultado é aquilo a que se chama a “espiral recessiva”: Mais cortes conduzem a mais défice e mais endividamento, o que por sua vez tem que ser corrigido com mais cortes, os quais vão provocar mais défice e endividamento, e assim por diante. A meia verdade da direita é também uma meia mentira.
    Para o segundo problema, a direita encara a actual crise como uma “oportunidade” para moldar a economia à sua ideologia. A uma economia de serviços com um tecido empresarial constituído por micro empresas oriundas de empresários pertencentes à chamada “classe média”, deve dar lugar uma economia com menos mas melhores empresas (Já Estaline dizia que no tempo dele a Rússia ficaria com “menos mas melhores russos”), geridas de forma eficiente e profissional (pelos administradores pertencentes à “elite” e formados nas Universidades da “elite”), vocacionadas para a exportação, o novo el dorado e panaceia para todos os males, tendo em conta os mercados globais, mormente os emergentes. Para isso, é necessário conseguir “ganhos de produtividade” e “flexibilização” da gestão. É também necessário que o Estado desista de investir, de modo a que os capitais existentes fiquem disponíveis para o investimento privado em vez de serem desperdiçados em investimentos públicos.
Crítica: É certo que nas últimas décadas, mercê da adesão à CEE/UE, o nosso tecido produtivo sofreu uma assinalável transformação, de base rural e indústria pesada concentrada num pequeno número de grandes empresas, para uma economia atomizada e de serviços. O modelo de crescimento não foi o melhor, mas o anterior modelo também era insustentável, pois só subsistiu enquanto dispôs de mão de obra abundante, indiferenciada e muito barata, bem como matérias primas baratas provenientes das colónias africanas. O fim do ciclo colonial, o fluxo de imigração proveniente de África e o anseio de mobilidade sócio-económica decorrente da liberdade e da democracia motivou o fim desse modelo e a adopção de um novo que, à data, era tido como o melhor para o nosso país.
    O que a direita define como “ganhos de produtividade” e “flexibilização” não é mais senão a pretensão de voltar a dispor de mão de obra barata (agora qualificada, graças ao enorme salto qualitativo da escola pública) e descartável. Com efeito, a produtividade resume-se a uma equação: O valor dos bens ou serviços produzidos a dividir pelo custo da sua produção. Se o custo baixar mais que o valor, ainda que o valor do produto seja também baixo, a produtividade aumenta. Porém, as economias competitivas estão focadas no valor e não no custo. Se, por exemplo, um operário do calçado português que produz sapatos que se vendem a 150€ trocar o seu posto de trabalho com um operário do calçado inglês (ambos com a mesma experiência, qualificações e competências) que produz sapatos que se vendem a 450€, o operário português, só pelo mero facto de viajar até Inglaterra será três vezes mais produtivo, ao passo que o inglês o será três vezes menos. Quando ambos regressarem aos respectivos países de origem, será invertida a produtividade. Isto demonstra que a produtividade está no valor do bem ou serviço produzido e não no custo para o produzir. As economias mais competitivas do mundo (Suíça, Suécia, Alemanha, etc) são as que têm mais custos, designadamente laborais, mas também, e sobretudo, as que produzem com mais valor; Por mais baixo que seja o salário de um operário chinês relativamente a um suíço, um relógio suíço será sempre mais caro, isto é, de maior valor, do que um relógio chinês, e por isso, a fábrica suíça será sempre mais produtiva que a chinesa: nisto consiste a competitividade; quanto maior for o valor em relação ao custo, maior será a competitividade. Uma economia empobrecida, sobrevivente apenas porque tem baixos custos, é inviável no futuro. Alguém, algures, conseguirá ter um custo mais baixo.

A ESQUERDA

    A Esquerda, essencialmente, a esquerda comprometida com o programa de ajustamento, também apresenta soluções, muito embora diferenciadas, para resolver a actual crise. E são duas, as soluções propostas:

    A primeira: Se é certo que sem disciplina nas contas públicas não há crescimento, sem crescimento também não é possível haver disciplina orçamental porque faltam as receitas. Assim, há que colocar a tónica no crescimento e não na austeridade.

    A segunda: O desemprego é uma “chaga social” que mina a sociedade, e consequência dos efeitos perversos da austeridade. Devem, pois, ser tomadas medidas de estímulo ao emprego, de modo a diminuir a despesa com prestações sociais de apoio aos desempregados e aumentar a receita fiscal, consequência do acréscimo de rendimento das famílias e das empresas.

    Crítica: Tal como a direita diz uma meia verdade, a esquerda também o faz, ao dizer que sem crescimento não há disciplina das contas públicas. Porém, sem uma abordagem diferente, não é possível sair deste dilema: Austeridade hoje para ter crescimento amanhã ou crescimento hoje para ter contas públicas saudáveis amanhã?

    O que é o crescimento?

    A economia – e a política - dos nossos dias vive obcecada com o crescimento. Com efeito, plantámos um “chip” no nosso cérebro ao qual associámos um binómio “prazer/dor”: Se a nossa economia cresce, estamos felizes (prazer), se não cresce, estamos deprimidos (dor). Esta obsessão pelo crescimento radica na crença, aliás algo infantil, de possibilidade de um crescimento perpétuo, infinito. Se a cada ano, crescermos mais do que no ano anterior, seremos felizes e todos os problemas do mundo serão resolvidos. O crescimento é a chave do desenvolvimento, da qualidade de vida, dos padrões civilizacionais elevados. Desmontemos esta crença com o exemplo, por um lado, de países como o Brasil, a Índia e a China e, por outro, do Japão e da Itália.
    O crescimento do PIB no Brasil, nos últimos anos, tem rondado os 4 a 5% anuais. Porém, e como todos nós sabemos, não é só o crescimento que é elevado no Brasil; a iniquidade na distribuição do rendimento também. Por isso, logo por debaixo de uma fina camada de samba, futebol, alegria e Carnaval, a sociedade brasileira trava uma amarga e interminável guerra civil. A taxa de homicídios é das mais elevadas do mundo e, de longe, a mais elevada do mundo num país daquelas dimensões. Todos os anos são assassinadas no Brasil mais de 40.000 pessoas. O crescimento, por si só, sem ser equitativamente distribuído, não gera igualdade de oportunidades, nem justiça, nem paz.
    Na Índia, as taxas de crescimento são ainda maiores e rondam, em média, nos últimos anos, valores superiores a 7%. Porém, nem só a riqueza cresceu naquele país; a pobreza também. A Índia tem hoje, 60 anos após a sua independência, o dobro dos pobres que tinha então: mais de 800 milhões. A Índia pode ter vários milionários na lista da “Forbes”, exportar médicos e informáticos para todo o mundo e é uma potência nuclear com aspirações a membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas os indianos morrem de doenças infecciosas como a lepra e a peste bubónica, doenças que só conhecemos pelos livros de História, e o bem nacional mais precioso é o saneamento básico: 80% da população rural e 20% da população urbana não tem saneamento básico. Calcula-se que sejam cerca de 300 mil, as toneladas diárias de dejectos humanos largados nos rios, lagos, praias, campos de cultivo, orlas das florestas e, sim, em plena via pública, por milhões de pessoas que, muito embora vivam num país que cresce mais de 7% ao ano, é incapaz de prover às necessidades mais básicas do ser humano. O crescimento, por si só, não resolve o atraso no desenvolvimento.
    Por último, mas não em último, a China, a campeã mundial do crescimento económico, com taxas que rondam os 10%. Não é só o crescimento chinês que impressiona; a feroz tirania do seu regime, o desprezo aviltante pelo meio ambiente, a tortura, as prisões arbitrárias, a farsa grotesca do seu sistema de “justiça”, que mais não é que uma gigantesca indústria de execuções, a corrupção que corrói até aos ossos toda a sociedade chinesa, onde nada se faz sem ser a troco de um suborno, também impressionam. Quanto ao seu modelo económico, a China escolheu a produção em massa de quinquilharias contrafeitas e extremamente baratas, mas de baixíssima qualidade, só possíveis de produzir graças, por um lado, à abundante mão de obra trazida do interior para as cidades costeiras pelas máfias ligadas às organizações locais do partido único, mão de obra essa sem qualquer espécie de protecção social, num estádio de desenvolvimento semelhante à primeira fase da revolução industrial, há 200 anos atrás, a que acrescem os milhões de trabalhadores prisioneiros, escravos e crianças ( ONG’s credíveis avançam com um número estarrecedor: pelo menos 80 milhões de crianças trabalham na indústria, pense nisto da próxima vez que entrar numa loja chinesa) e, por outro, ao desprezo por todas as regras ambientais (a poluição é o preço a pagar pelo progresso) e de ética empresarial (roubo descarado de patentes e contrafacção, pirataria informática, etc.). E o que faz a China com todo o dinheiro dos excedentes da sua balança comercial? Investe no seu mercado interno? Melhora as condições de vida dos seus povos? Desenvolve sustentadamente o país? Procura mudar o seu modelo económico com vista a uma economia mais ética e mais viável? Não. Compra dívida externa e entra no capital de empresas estrangeiras, numa lógica própria da corrupção, pensando que, “comprando” deste modo os estrangeiros, estes serão obrigados a fazer negócios com a China e irão abster-se de criticar o regime.
    Já o Japão apresenta uma realidade muito diferente. Nos últimos vinte anos, a economia japonesa cresceu a um despontante ritmo de menos de 1% ao ano, e a dívida pública japonesa está acima dos 200% do PIB (actualmente, a dívida pública portuguesa está nos 122%). Situação semelhante vive a Itália, com estagnação do crescimento e dívida pública elevada, acima dos 100% do PIB. Porém, quer num caso, quer noutro, ambos os países possuem elevadíssimos padrões de qualidade de vida, especialmente no Japão, no que respeita à educação, saúde, prestações sociais, cultura, etc. Paradoxalmente – ou talvez não – o Japão continua a ser um dos países mais competitivos do mundo, e a Itália não fica muito atrás, o que arrasa a crença de que uma economia só é competitiva se crescer muito e estiver a dever pouco, sem olhar à qualidade da economia e da sociedade, e não à mera quantidade.
Conclusão: O crescimento, por si só, não representa justiça, nem desenvolvimento, nem liberdade, nem paz: Representa apenas, dinheiro. E o dinheiro não possui qualidades morais, será de bom ou mau uso, consoante o uso que fizermos dele.

O que propõe então a esquerda “comprometida com a troika”?

    Quanto ao crescimento: Propõe “programas de estímulo”, que consistem na construção de infraestruturas (obras públicas) e apoios ao desenvolvimento tecnológico (subsídios a grandes empresas com departamentos de investigação e desenvolvimento), financiados por “Eurobonds”, ou seja, títulos de dívida pública emitida pelo BCE, para apoiar especificamente estes programas. O resultado: O dinheiro vai para grandes grupos económicos, as operações financeiras são tomadas pelos grandes Bancos, os contratos de adjudicação em regime de PPP são geridos pelos grandes escritórios de advogados, e todo este carrossel é enxameado por empresas de comunicação, relações públicas, trabalho temporário, formação, assessoria, auditoria, etc., de que invariavelmente são sócios os ministros, os autarcas, os deputados, os chefes de gabinete e outros membros dos partidos dominantes, bem como as respectivas mulheres, maridos, filhos e filhas, primos e cunhadas, sobrinhos e enteados, apesar de todas estas empresas ganharem concursos públicos impecavelmente limpos e transparentes (tão transparentes que não escondem o óbvio). Estes investimentos, a maior parte dos quais redundantes, resultam em crescimento do PIB, é certo, mas este crescimento aproveita apenas a um número reduzido de pessoas e empresas, justamente aquelas que fazem parte do problema e não da solução. Já vimos este filme. Obrigado, mas não, obrigado.
    Quanto aos estímulos ao emprego, ou “políticas activas de emprego”, estas resumem-se a criar a ilusão de que, durante algum tempo, algumas pessoas têm algum emprego. Na verdade, os estímulos consistem em disponibilizar, por um lado, mão de obra grátis ou quase grátis para “estágios”, onde se cria a ilusão de que, se os estagiários mostrarem muita força de vontade, talvez fiquem (mas nunca ficam, porque depois de uma fornada de carne fresca, vem sempre outra ainda mais fresca), e por outro, “incentivos à contratação” ou seja, a comparticipação pelo contribuinte dos encargos da empresa, seja por isenções ou benefícios fiscais, seja por dispensa total ou parcial de pagamento da TSU, seja até por copagamento do salário. Uma vez terminados estes estímulos, todos voltam à condição inicial. Todos, não. As empresas que beneficiaram de mão de obra qualificada a preço da chuva estão mais ricas. Também já vimos este filme.

    Vimos, pois, que nem a direita nem a esquerda estão em condições de apresentar uma saída credível e exequível para o actual estado de coisas, desde logo, pelo seu comprometimento (diríamos mais, pela sua cumplicidade) com o passado, nem as soluções que apresentam são viáveis, seja por são falsas soluções, meias soluções, ou soluções produtoras de problemas para o futuro. E deste nó górdio em que parece estarmos enredados, não se vislumbra uma saída. Mas, e se pensássemos “fora da caixa”? E se abordássemos os problemas por uma perspectiva diferente?

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