A pedido de Camilo Castelo Negro, publico o capítulo 2 do seu panfleto.
CAPÍTULO 2
A RECESSÃO: E AGORA?
A DIREITA
A direita fornece como
solução para a situação actual, duas receitas que advêm dos seguintes
pressupostos:
Primeiro: Sem disciplina das contas públicas, isto é, dívida
soberana e défice abaixo de certos valores tidos por aceitáveis, não é possível
ter a economia a crescer.
Segundo: Sem aumento da competitividade, não é possível termos
uma economia capaz de enfrentar os mercados e os novos desafios globais, desde
logo os mercados emergentes e a globalização.
Partindo destes
pressupostos, as receitas avançadas pela direita são as seguintes:
Para o primeiro problema, devem ser encetadas e prosseguidas
políticas restritivas do investimento público e do consumo privado, de modo a
melhorar a balança de pagamentos e a diminuir o défice. Menos gastos resultam
em um saldo menor das contas públicas e, por conseguinte, um défice menor;
menos investimento significa menos endividamento e menos consumo significa
menos importações, logo, menos dívida soberana.
Crítica: Se é verdade que, em tese, estes postulados estão
certos, não é menos verdade que os meios utilizados (menos investimento, menos
consumo, diminuição do poder de compra, seja pelo aumento de impostos, seja
pelo corte de salários, subsídios, pensões e prestações sociais) contêm em si
efeitos perversos que contrariam o efeito desejado, isto é, resultam na
diminuição do tecido empresarial e, por conseguinte produtivo, o que leva a uma
diminuição da receita fiscal (menos activos e menos empresas a pagar impostos)
e aumento da despesa social (mais desempregados e dependentes). O resultado é
aquilo a que se chama a “espiral recessiva”: Mais cortes conduzem a mais défice
e mais endividamento, o que por sua vez tem que ser corrigido com mais cortes,
os quais vão provocar mais défice e endividamento, e assim por diante. A meia
verdade da direita é também uma meia mentira.
Para o segundo
problema, a direita encara a actual crise como uma “oportunidade” para moldar a
economia à sua ideologia. A uma economia de serviços com um tecido empresarial
constituído por micro empresas oriundas de empresários pertencentes à chamada
“classe média”, deve dar lugar uma economia com menos mas melhores empresas (Já
Estaline dizia que no tempo dele a Rússia ficaria com “menos mas melhores
russos”), geridas de forma eficiente e profissional (pelos administradores
pertencentes à “elite” e formados nas Universidades da “elite”), vocacionadas
para a exportação, o novo el dorado e panaceia para todos os males, tendo em
conta os mercados globais, mormente os emergentes. Para isso, é necessário
conseguir “ganhos de produtividade” e “flexibilização” da gestão. É também
necessário que o Estado desista de investir, de modo a que os capitais
existentes fiquem disponíveis para o investimento privado em vez de serem
desperdiçados em investimentos públicos.
Crítica: É certo que nas últimas décadas, mercê da adesão à
CEE/UE, o nosso tecido produtivo sofreu uma assinalável transformação, de base
rural e indústria pesada concentrada num pequeno número de grandes empresas,
para uma economia atomizada e de serviços. O modelo de crescimento não foi o
melhor, mas o anterior modelo também era insustentável, pois só subsistiu
enquanto dispôs de mão de obra abundante, indiferenciada e muito barata, bem
como matérias primas baratas provenientes das colónias africanas. O fim do
ciclo colonial, o fluxo de imigração proveniente de África e o anseio de
mobilidade sócio-económica decorrente da liberdade e da democracia motivou o
fim desse modelo e a adopção de um novo que, à data, era tido como o melhor
para o nosso país.
O que a direita define
como “ganhos de produtividade” e “flexibilização” não é mais senão a pretensão
de voltar a dispor de mão de obra barata (agora qualificada, graças ao enorme
salto qualitativo da escola pública) e descartável. Com efeito, a produtividade
resume-se a uma equação: O valor dos bens ou serviços produzidos a dividir pelo
custo da sua produção. Se o custo baixar mais que o valor, ainda que o valor do
produto seja também baixo, a produtividade aumenta. Porém, as economias
competitivas estão focadas no valor e não no custo. Se, por exemplo, um
operário do calçado português que produz sapatos que se vendem a 150€ trocar o
seu posto de trabalho com um operário do calçado inglês (ambos com a mesma
experiência, qualificações e competências) que produz sapatos que se vendem a
450€, o operário português, só pelo mero facto de viajar até Inglaterra será
três vezes mais produtivo, ao passo que o inglês o será três vezes menos.
Quando ambos regressarem aos respectivos países de origem, será invertida a
produtividade. Isto demonstra que a produtividade está no valor do bem ou
serviço produzido e não no custo para o produzir. As economias mais
competitivas do mundo (Suíça, Suécia, Alemanha, etc) são as que têm mais
custos, designadamente laborais, mas também, e sobretudo, as que produzem com
mais valor; Por mais baixo que seja o salário de um operário chinês
relativamente a um suíço, um relógio suíço será sempre mais caro, isto é, de
maior valor, do que um relógio chinês, e por isso, a fábrica suíça será sempre
mais produtiva que a chinesa: nisto consiste a competitividade; quanto maior
for o valor em relação ao custo, maior será a competitividade. Uma economia
empobrecida, sobrevivente apenas porque tem baixos custos, é inviável no
futuro. Alguém, algures, conseguirá ter um custo mais baixo.
A ESQUERDA
A Esquerda,
essencialmente, a esquerda comprometida com o programa de ajustamento, também
apresenta soluções, muito embora diferenciadas, para resolver a actual crise. E
são duas, as soluções propostas:
A primeira: Se é certo
que sem disciplina nas contas públicas não há crescimento, sem crescimento
também não é possível haver disciplina orçamental porque faltam as receitas.
Assim, há que colocar a tónica no crescimento e não na austeridade.
A segunda: O desemprego
é uma “chaga social” que mina a sociedade, e consequência dos efeitos perversos
da austeridade. Devem, pois, ser tomadas medidas de estímulo ao emprego, de
modo a diminuir a despesa com prestações sociais de apoio aos desempregados e
aumentar a receita fiscal, consequência do acréscimo de rendimento das famílias
e das empresas.
Crítica: Tal como a
direita diz uma meia verdade, a esquerda também o faz, ao dizer que sem
crescimento não há disciplina das contas públicas. Porém, sem uma abordagem
diferente, não é possível sair deste dilema: Austeridade hoje para ter
crescimento amanhã ou crescimento hoje para ter contas públicas saudáveis
amanhã?
O que é o crescimento?
A economia – e a política
- dos nossos dias vive obcecada com o crescimento. Com efeito, plantámos um
“chip” no nosso cérebro ao qual associámos um binómio “prazer/dor”: Se a nossa
economia cresce, estamos felizes (prazer), se não cresce, estamos deprimidos
(dor). Esta obsessão pelo crescimento radica na crença, aliás algo infantil,
de possibilidade de um crescimento perpétuo, infinito. Se a cada ano,
crescermos mais do que no ano anterior, seremos felizes e todos os problemas do
mundo serão resolvidos. O crescimento é a chave do desenvolvimento, da
qualidade de vida, dos padrões civilizacionais elevados. Desmontemos esta
crença com o exemplo, por um lado, de países como o Brasil, a Índia e a China
e, por outro, do Japão e da Itália.
O crescimento do PIB no
Brasil, nos últimos anos, tem rondado os 4 a 5% anuais. Porém, e como todos nós
sabemos, não é só o crescimento que é elevado no Brasil; a iniquidade na
distribuição do rendimento também. Por isso, logo por debaixo de uma fina
camada de samba, futebol, alegria e Carnaval, a sociedade brasileira trava uma
amarga e interminável guerra civil. A taxa de homicídios é das mais elevadas do
mundo e, de longe, a mais elevada do mundo num país daquelas dimensões. Todos
os anos são assassinadas no Brasil mais de 40.000 pessoas. O crescimento, por
si só, sem ser equitativamente distribuído, não gera igualdade de
oportunidades, nem justiça, nem paz.
Na Índia, as taxas de
crescimento são ainda maiores e rondam, em média, nos últimos anos, valores
superiores a 7%. Porém, nem só a riqueza cresceu naquele país; a pobreza
também. A Índia tem hoje, 60 anos após a sua independência, o dobro dos pobres
que tinha então: mais de 800 milhões. A Índia pode ter vários milionários na
lista da “Forbes”, exportar médicos e informáticos para todo o mundo e é uma
potência nuclear com aspirações a membro permanente do Conselho de Segurança
das Nações Unidas, mas os indianos morrem de doenças infecciosas como a lepra e
a peste bubónica, doenças que só conhecemos pelos livros de História, e o bem
nacional mais precioso é o saneamento básico: 80% da população rural e 20% da
população urbana não tem saneamento básico. Calcula-se que sejam cerca de 300
mil, as toneladas diárias de dejectos humanos largados nos rios, lagos, praias,
campos de cultivo, orlas das florestas e, sim, em plena via pública, por
milhões de pessoas que, muito embora vivam num país que cresce mais de 7% ao
ano, é incapaz de prover às necessidades mais básicas do ser humano. O
crescimento, por si só, não resolve o atraso no desenvolvimento.
Por último, mas não em
último, a China, a campeã mundial do crescimento económico, com taxas que
rondam os 10%. Não é só o crescimento chinês que impressiona; a feroz tirania
do seu regime, o desprezo aviltante pelo meio ambiente, a tortura, as prisões arbitrárias,
a farsa grotesca do seu sistema de “justiça”, que mais não é que uma gigantesca
indústria de execuções, a corrupção que corrói até aos ossos toda a sociedade
chinesa, onde nada se faz sem ser a troco de um suborno, também impressionam.
Quanto ao seu modelo económico, a China escolheu a produção em massa de
quinquilharias contrafeitas e extremamente baratas, mas de baixíssima
qualidade, só possíveis de produzir graças, por um lado, à abundante mão de
obra trazida do interior para as cidades costeiras pelas máfias ligadas às
organizações locais do partido único, mão de obra essa sem qualquer espécie de
protecção social, num estádio de desenvolvimento semelhante à primeira fase da
revolução industrial, há 200 anos atrás, a que acrescem os milhões de trabalhadores
prisioneiros, escravos e crianças ( ONG’s credíveis avançam com um número
estarrecedor: pelo menos 80 milhões de crianças trabalham na indústria, pense
nisto da próxima vez que entrar numa loja chinesa) e, por outro, ao desprezo
por todas as regras ambientais (a poluição é o preço a pagar pelo progresso) e
de ética empresarial (roubo descarado de patentes e contrafacção, pirataria
informática, etc.). E o que faz a China com todo o dinheiro dos excedentes da
sua balança comercial? Investe no seu mercado interno? Melhora as condições de
vida dos seus povos? Desenvolve sustentadamente o país? Procura mudar o seu
modelo económico com vista a uma economia mais ética e mais viável? Não. Compra
dívida externa e entra no capital de empresas estrangeiras, numa lógica própria
da corrupção, pensando que, “comprando” deste modo os estrangeiros, estes serão
obrigados a fazer negócios com a China e irão abster-se de criticar o regime.
Já o Japão apresenta
uma realidade muito diferente. Nos últimos vinte anos, a economia japonesa
cresceu a um despontante ritmo de menos de 1% ao ano, e a dívida pública
japonesa está acima dos 200% do PIB (actualmente, a dívida pública portuguesa
está nos 122%). Situação semelhante vive a Itália, com estagnação do
crescimento e dívida pública elevada, acima dos 100% do PIB. Porém, quer num
caso, quer noutro, ambos os países possuem elevadíssimos padrões de qualidade
de vida, especialmente no Japão, no que respeita à educação, saúde, prestações
sociais, cultura, etc. Paradoxalmente – ou talvez não – o Japão continua a ser
um dos países mais competitivos do mundo, e a Itália não fica muito atrás, o
que arrasa a crença de que uma economia só é competitiva se crescer muito e
estiver a dever pouco, sem olhar à qualidade da economia e da sociedade, e não
à mera quantidade.
Conclusão: O crescimento, por si só, não representa justiça, nem
desenvolvimento, nem liberdade, nem paz: Representa apenas, dinheiro. E o
dinheiro não possui qualidades morais, será de bom ou mau uso, consoante o uso
que fizermos dele.
O que propõe então a esquerda “comprometida com a troika”?
Quanto ao crescimento:
Propõe “programas de estímulo”, que consistem na construção de infraestruturas
(obras públicas) e apoios ao desenvolvimento tecnológico (subsídios a grandes
empresas com departamentos de investigação e desenvolvimento), financiados por
“Eurobonds”, ou seja, títulos de dívida pública emitida pelo BCE, para apoiar
especificamente estes programas. O resultado: O dinheiro vai para grandes
grupos económicos, as operações financeiras são tomadas pelos grandes Bancos,
os contratos de adjudicação em regime de PPP são geridos pelos grandes
escritórios de advogados, e todo este carrossel é enxameado por empresas de
comunicação, relações públicas, trabalho temporário, formação, assessoria,
auditoria, etc., de que invariavelmente são sócios os ministros, os autarcas,
os deputados, os chefes de gabinete e outros membros dos partidos dominantes,
bem como as respectivas mulheres, maridos, filhos e filhas, primos e cunhadas,
sobrinhos e enteados, apesar de todas estas empresas ganharem concursos
públicos impecavelmente limpos e transparentes (tão transparentes que não
escondem o óbvio). Estes investimentos, a maior parte dos quais redundantes,
resultam em crescimento do PIB, é certo, mas este crescimento aproveita apenas
a um número reduzido de pessoas e empresas, justamente aquelas que fazem parte
do problema e não da solução. Já vimos este filme. Obrigado, mas não, obrigado.
Quanto aos estímulos ao
emprego, ou “políticas activas de emprego”, estas resumem-se a criar a ilusão
de que, durante algum tempo, algumas pessoas têm algum emprego. Na verdade, os
estímulos consistem em disponibilizar, por um lado, mão de obra grátis ou quase
grátis para “estágios”, onde se cria a ilusão de que, se os estagiários
mostrarem muita força de vontade, talvez fiquem (mas nunca ficam, porque depois
de uma fornada de carne fresca, vem sempre outra ainda mais fresca), e por
outro, “incentivos à contratação” ou seja, a comparticipação pelo contribuinte
dos encargos da empresa, seja por isenções ou benefícios fiscais, seja por
dispensa total ou parcial de pagamento da TSU, seja até por copagamento do
salário. Uma vez terminados estes estímulos, todos voltam à condição inicial.
Todos, não. As empresas que beneficiaram de mão de obra qualificada a preço da
chuva estão mais ricas. Também já vimos este filme.
Vimos, pois, que nem a
direita nem a esquerda estão em condições de apresentar uma saída credível e
exequível para o actual estado de coisas, desde logo, pelo seu comprometimento
(diríamos mais, pela sua cumplicidade) com o passado, nem as soluções que
apresentam são viáveis, seja por são falsas soluções, meias soluções, ou
soluções produtoras de problemas para o futuro. E deste nó górdio em que parece
estarmos enredados, não se vislumbra uma saída. Mas, e se pensássemos “fora da
caixa”? E se abordássemos os problemas por uma perspectiva diferente?
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