segunda-feira, 29 de julho de 2013

QUATRO PÉROLAS ATIRADAS (POR) UM PORCO



“Não subestimemos a estupidez de Pedro Passos Coelho”
Clara Ferreira Alves



Passos Coelho citado no "Público" de 28 de Julho de 2013.


http://www.publico.pt/politica/noticia/portugal-esta-obrigado-a-fazer-agora-reformas-de-forma-concentrada-avisa-passos-1601599

    Pedro Passos Coelho anda em campanha eleitoral pelo país. E da sua boca saem as mais variadas barbaridades. As declarações de Passos seriam cómicas e ridículas, se a posição que ocupa – a de Primeiro Ministro (não executivo ou não, é indiferente) – não as tornassem perigosas e trágicas. Mas vamos às pérolas. Abstemo-nos de dar reparo na sintaxe e no léxico, no uso confrangedor das palavras que tornam cada um dos seus discursos um insulto à língua portuguesa e reveladores de um indivíduo obtusamente inculto.

Primeira pérola:
“Agora tudo tem de se fazer neste período de três anos, tudo. A reforma do Estado, a reforma das Parcerias Público-Privadas, dos contratos swaps - tudo o que constitui risco elevado para o país, tudo o que nos impediu de crescer durante anos, tudo o que aumentou o peso do Estado e obrigou os portugueses a pagar mais impostos”.

    Para Passos, há um antes e um depois dele. Trata-se de uma personalidade delirante, com um ego doentio e que se julga senhor do país. Julga-se também um predestinado, o salvador que vai fazer em três anos (mas não faltam só dois para as eleições?) o que o mundo inteiro que o precedeu não fez em trinta. Coloca a “reforma dos contratos swaps” (reforma?) no mesmo patamar da reforma do Estado, ou seja, é tudo uma questão de números. A falta de reformas é a razão que “obrigou os portugueses a pagar impostos”, o que significa que, feitas as reformas, sejam elas o que forem, a carga fiscal irá diminuir ou até, quem sabe, desaparecer. Diz isto quem é responsável pelo maior aumento de impostos de que há memória. E já agora, crescemos durante anos e o que nos impede de crescer agora é a austeridade.

Segunda pérola:
 “Verdadeiramente, o que eu acho inaceitável é a indulgência perante a irresponsabilidade e o que eu acho indesculpável é uma sociedade política que não tem inteligência e exigência para cobrar a quem governa os resultados que são importantes para o país”.
   
    Passos considera indesculpável que exista “indulgência” perante a irresponsabilidade. Não sabendo bem (falha nossa, decerto) em que consiste a “indulgência” na mente iluminada do chefe do PSD, não podemos concordar mais, se isso significar complacência perante a irresponsabilidade. Olha quem fala.
    E a quem se refere o PM quando fala em “sociedade política”? Aos portugueses? Aos políticos? É apenas outro pontapé na gramática? Parece que são os portugueses “que não tem inteligência e exigência” para cobrar a quem governa. Para memória futura. Pela parte de muitos portugueses, essa exigência e inteligência será revelada em momento oportuno, assim o esperamos.

Terceira pérola:
O líder social-democrata defendeu depois que é preciso estabelecer uma hierarquia do que é importante no país, para evitar um novo pedido de assistência externa, acreditando que a Constituição não vai impedir as reformas necessárias. O pior que pode acontecer ao país é ficar sem dinheiro para pagar salários, considerou Passos, e lembrou que foi justamente por isso que Portugal teve de pedir assistência externa.

    Aqui estamos no domínio da cartilha neo liberal e da ideologia simplória que a enforma em todo o seu esplendor. Vejamos: Um novo pedido de assistência externa estará dependente do estabelecimento de uma hierarquia do que é importante para o país. E é Passos quem vai estabelecer essa hierarquia. Não sabemos ainda qual o destino que vai ser dado ao que não é importante. Inanição? Fuzilamentos? Câmaras de gás? Apostas, aceitam-se.
    A seguir, a clássica mentira de que a ajuda externa se deveu à falta de dinheiro para pagar salários. Como todos os portugueses bem sabem, actualmente nem os patrões nem o Estado pagam salários, já que estes são pagos pela Troika; os credores estão sem receber quando as dívidas do Estado português se vencem (porque o dinheiro está a ser usado para pagar salários) e a banca não foi recapitalizada com dinheiro da Troika (porque esse dinheiro é usado, repita-se, para pagar salários). Ou não?

Quarta pérola:
“Para que isso não volte a acontecer, temos de fazer uma hierarquia do que é realmente importante e o que não for tem de deixar de ser feito. As pessoas que faziam aquilo que era menos importante têm que ser afectas a fazer outras coisas que são mais importantes e, se não for preciso tanta gente para fazer isso, essas pessoas têm de ir fazer alguma coisa para outro lado”. Não pode, acrescentou, “o Estado ficar-lhes a pagar eternamente para fazer o que não é preciso - isto é assim em qualquer país desenvolvido do mundo”.

    Ignoremos a infantilidade na construção do discurso, próprio de uma criança lerda que ainda não completou o primeiro ciclo. Apelando aos melhores critérios interpretativos, tentemos então decifrar o que preconiza este arauto do liberalismo para as “pessoas”: As que estiverem a fazer coisas menos importantes têm de ser afectas a fazer “outras coisas que são mais importantes” (sim, a qualidade do discurso é mesmo confrangedora!), mas, se ainda assim, “não for preciso tanta gente para fazer isso” (as coisas importantes), convidam-se as pessoas a ir “fazer alguma coisa (importante ou não?) para outro lado”. Não, com o devido respeito, este discurso não foi proferido por um drogado sob influência de substâncias alucinogénas, foi mesmo o primeiro ministro português. Que fique registado: As pessoas (os meninos?) devem ir fazer alguma coisa para outro lado… Infelizmente, isto não é para rir. O discurso idiota de Passos revela o desprezo pelos valores e a dignidade do trabalho e até do ser humano e lembra-nos porque é perigoso eleger mentecaptos para o governo. Mais uma vez, o conceito infantil de que quem não faz falta deve ir para “outro lado”. Estamos esclarecidos.    


A campanha prossegue alegremente e, estamos certos, outras pérolas serão atiradas, não aos, mas pelos porcos do costume.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Da Europa parte 2 Fim

Conclui-se a publicação do panfleto com a última parte do capítulo 7 dedicado à Europa.

   

A MOEDA ÚNICA

   Para juntar a injúria ao insulto, à crise das instituições, temos a crise da moeda única. Esta, criada para dar à Europa a estabilidade cambial e afastar de vez o fantasma da inflação, bem como para harmonizar os mercados e as economias e assegurar um financiamento a baixos juros, a longo prazo, transformou-se num problema, um verdadeiro nó górdio que ninguém sabe como desatar. O Euro, de solução, transformou-se em problema. Porquê? Qual é o mal da moeda única?
   Para entendermos o que se passa com a moeda única, talvez valha a pena pensar em que consiste uma moeda, bem, única. Mais uma vez, façamos apelo aos nossos primos da América e comparemos o Euro com o Dólar.
   O Dólar é emitido por uma única entidade, tal como o Euro. Num caso, é a Reserva Federal, noutro, o Banco Central Europeu.
   O Dólar vigora em todo o território dos Estados Unidos, sem variação cambial. O Euro também vigora em todos os estados que aderiram ao tratado da união económica e monetária.
   A Reserva Federal, após análise cíclica às condições do mercado, emite uma nota em que fixa o valor da taxa de juro que está disposta a pagar pela sua moeda. Esta nota tem a virtude de “fixar” o mercado, isto é, os bancos que negoceiam moeda seguem aquela taxa como referência, e as diferentes taxas de juro, consoante as maturidades, variam, mas pouco, em torno da taxa de referência. O BCE faz o mesmo, “fixando”, deste modo a Euribor. Esta missão é determinante em dois aspectos: Primeiro, controla a estabilidade dos preços, ou seja, contraria as tendências inflacionistas, contribuindo decisivamente para uma inflação tendencialmente baixa. Segundo, fixando o “preço” do dinheiro, controla também os fluxos de capital no mercado, não deixando que haja dinheiro a mais (o que conduziria a uma desvalorização da moeda) nem dinheiro a menos (o efeito contrário). É este, podemos dizê-lo, o maior sucesso até agora da missão do BCE.
   A FED (nicname ou abreviatura para Reserva Federal) emite dívida em Dólares e depois empresta esse dinheiro angariado no mercado, quer aos bancos nacionais, quer aos bancos estrangeiros, quer ao governo federal, quer aos governos estaduais. E agora é que se nota a diferença entre uma moeda verdadeiramente única e uma moeda “quase única” ou “única, ma non troppo”. É certo que o BCE emite dívida. É certo que o BCE empresta aos bancos. Mas o BCE não é o único nem o mais importante emissor de dívida. Na zona Euro, cada estado é responsável por emitir dívida para as suas necessidades de financiamento, em Euros, é certo, mas tendo como respaldo as suas próprias reservas e os seus próprios activos. E como um estado não tem, por si só, o poder de influenciar o mercado, este percepciona a saúde da economia do estado emissor e o seu respectivo risco, e cobra o yield ou juro, de acordo com esse risco. E como os riscos variam de estado para estado, assim também variam os juros cobrados. É esta brecha na unidade da moeda, a responsável pela actual crise das dívidas soberanas.
   Esta brecha existe porque há, como dissemos, uma variação entre os juros que os diferentes estados obtêm quando se financiam. A diferença é de tal modo acentuada que alguns países financiam-se a juros muito baixos, e outros, a juros elevadíssimos. Estes últimos, quanto mais necessitam de financiamento, mais se endividam, porque maior é o serviço da dívida, ou seja, o valor dos juros que têm que pagar, e quanto maior for a dívida, maior será o risco. Este, por sua vez, determina o aumento dos juros e o consequente aumento do endividamento, numa espiral de dívida que não pára de crescer.   

   REFORMAR A EUROPA: O EURO         
     
   Comecemos, então, pela moeda quase única. Se o problema tem a ver com a multiplicidade de emissores de dívida, o que fazer?
   Alguns Estados, designadamente aqueles que têm melhor rating, ou seja, menor percepção de risco, e por conseguinte, obtêm no mercado yields mais baixos, entendem que as coisas devem ficar como estão, e que cada Estado se deve desenvencilhar por si próprio no que respeita ao financiamento. Dizem que os Estados com melhor rating não devem ser prejudicados por aqueles em que os juros são mais elevados. No fundo, se há uma diferença é porque uns são mais rigorosos e criteriosos ao passo que outros são relapsos e gastadores. A história da cigarra e da formiga contada às criancinhas. Dizem também que os seus contribuintes não devem pagar para os que se “portam mal”, sendo estes, os Estados que estão em dificuldade.
   Esta tese engloba duas mentiras e uma estupidez. Primeira mentira: Uns são melhores do que outros porque fizeram o seu “trabalho da casa”, isto é, uns são cigarras e outros, formigas.
   Esta mentira advém da ignorância e da falta de qualidades de liderança e até da incompreensão do que é a realidade europeia, que os políticos que integram actuais governos do centro e norte da Europa patenteiam. O que há (e sempre houve) é economias mais fortes e outras mais fracas, economias grandes e pequenas, economias alavancadas na indústria e outras, nos serviços. Isto não significa que uns sejam objectivamente melhores do que outros; significa apenas que uns têm condições objectivas, históricas e estruturais para resistir melhor a uma crise do que outros, desde logo porque o ponto de partida do seu desenvolvimento económico foi diferente. Na UE há Estados que já eram muito desenvolvidos há cem anos enquanto que outros só mais recentemente lograram alcançar estádios de desenvolvimento semelhante. As diferenças na força das economias não tem a ver com trabalho ou preguiça, com previdência ou imprevidência, com poupança ou despesa; tem a ver com o facto muito simples de sermos diferentes, tal como o Kentucky é diferente do Massachusetts sem que essa diferença em peso económico signifique, por parte da FED, a asfixia financeira a um Estado e o maná a outro. Ambos são estados da mesma federação e por isso recebem tratamento igual e igual acesso ao financiamento.
   De resto, a política de estabilidade dos preços traduzida na taxa fixada pelo BCE, a Euribor, que já mencionámos anteriormente, é um sucesso e decorre da harmonização dos riscos com vista à obtenção de taxas de juro e de inflação tendencialmente baixas. De facto, se a taxa média da Euribor for, por exemplo, 2% e um dado Estado tiver uma taxa de inflação, digamos, de 1% ou menos, esse Estado em concreto estará a ser “prejudicado”, na medida em que a Euribor para ele poderia ser mais baixa. Já um Estado em que a taxa de inflação é de 3% estará a ser “beneficiado”, visto que goza de uma taxa directora inferior à taxa de inflação. Porém, as eventuais vantagens ou desvantagens egoísticas cedem perante o bem maior de não haver, nem deflação nem hiperinflação. Na verdade, todos beneficiam, por igual, de uma inflação tendencialmente uniforme e tendencialmente baixa, o que é um bem de valor muito superior face às pequenas vantagens que um ou outro Estado poderiam ganhar se a Euribor não existisse.
   Segunda mentira: Uns não devem pagar pelos outros. Esta mentira aviltante tem sido repetida à exaustão pelos governos de direita da Europa do centro e norte. Demagogicamente, referem-se aos seus contribuintes, que não devem pagar o esforço de equilíbrio das contas públicas e do endividamento de outros estados, devendo essa obrigação recair sobre os contribuíntes desses países em dificuldade. Trata-se de uma mentira abjecta e que deve ser furiosamente repudiada.
   Vejamos: Quando a Europa “ajuda” um país em dificuldade, fá-lo através do FEEF, o Fundo Europeu de Estabilidade Financeira. Mas quem é que financia este fundo? Desde logo o BCE, que emite dívida própria, financiando-se no mercado primário, isto é, no mercado em que apenas os maiores bancos actuam. Mas também financiam o fundo os países da zona Euro. E como? “Com o dinheiro dos contribuíntes” dizem os demagogos da direita. Não! Mil vezes não! O dinheiro dos contribuintes constitui receita fiscal de cada Estado. E a receita fiscal faz parte do Orçamento. É o FEEF financiado pelos orçamentos nacionais? Não! Então, meus caros, o dinheiro dos contribuíntes não é visto nem achado para este fundo. Os contribuintes pagam os seus impostos e a receita fiscal é integralmente gasta dentro das suas fronteiras. Nem um cêntimo do dinheiro dos impostos serve para ajudar seja quem for. Basta desta mentira!
   Se não é financiado pelos orçamentos nacionais, então como se financia o FEEF, para além do BCE? Muito simplesmente, os Estados também vão ao mercado financiar-se e, como se financiam no mercado primário, conseguem yields de 1% ou menos. E é esse dinheiro – e não o dos contribuíntes – que vai para o FEEF. Mas há mais: Esses Estados financiam-se a 1% ou menos, mas depois as taxas de juro cobradas aos países sob resgate são de 3 a 4%, isto é, os nossos “amigos” compram o dinheiro a 1 e vendem-nos a 3 ou 4! E tudo para nos “ajudar”! Com amigos destes, quem é que precisa de inimigos?
   A estupidez: A crise das dívidas soberanas é sistémica e mina o Euro. Cada vez que um Estado fica em dificuldades por não conseguir suster a sua dívida, é o Euro que fica em cheque. E o sistema monetário tem mais de psicológico do que de estritamente económico. A Europa não consegue sair da estagnação e alguém, algures, está em recessão, ou tem défice excessivo, ou paga juros elevadíssimos. Estes fenómenos arrastam a economia de um país para o fundo. E como estamos todos na mesma zona monetária, os problemas de uns acabam por afectar todos. Estima-se que um valor equivalente a 3 a 4% do PIB europeu seria suficiente para acabar rápida e definitivamente com a crise das dívidas. Mas acabar com a crise implica solidariedade em vez de egoísmo, liderança em vez de mesquinhez, visão e coragem, em vez de mediocridade. E o que nos falta são lideres dignos desse nome. Preferem continuar com as suas mentiras, pois pensam assim convencer os seus eleitorados ignorantes e revanchistas. Enganam-se. Prolongando a agonia do Euro, a crise tem o efeito de “ola mexicana”, isto é, replica em todos os Estados, “cigarras” ou “formigas” por igual, mais tarde ou mais cedo. E se fossem um pouco mais inteligentes e informados, os eleitores conservadores, perante a crise que os atinge deveriam perguntar-se se as coisas são como lhes contam.       

   O que fazer.

   Emissão de dívida unificada no BCE

   A moeda única deve ser verdadeiramente única e não se ficar pelas meias tintas. O BCE deve assumir a missão de absorver toda a dívida pública de todos os Estados da zona Euro e emitir em seu lugar dívida no mercado primário (logicamente a juros baixos) e financiar a banca e os Estados com esse capital. Os estados, por sua vez, corresponsabilizam-se, juntando os seus activos e reservas como colaterias, isto é, como garantias, às reservas do BCE. Deste modo, repõe-se o tecto da dívida – que, segundo condição do tratado, não deve ultrapassar os 60% do PIB – alivia-se de vez a pressão das dívidas sobre a economia, visto que os juros, por serem baixos, fazem baixar o serviço da dívida e libertam capital para o investimento, e harmoniza-se o mercado, ficando a zona Euro com um mercado monetário semelhante ao dos americanos, sem surtos de crise aqui ou ali.

   Compensação da dívida

   Uma vez que a maior parte das dívidas soberanas são entre Estados europeus, ou seja, a maior parte da dívida é doméstica ou interna à escala europeia, o montante das dívidas deverá ser compensado até ao limite dos créditos, por meio de um mecanismo de compensação de créditos e dívidas. Se o Estado A deve 100 ao Estado B, mas é credor de 20 do Estado C, então o Estado A deixa de receber 20 e só paga 80 ao Estado B, sendo certo que o Estado C entrega a este os 20 que devia ao Estado A. O mesmo deverão fazer os bancos entre si, em operações de troca de dívida. Deste modo, o montante global da dívida baixa acentuadamente, com benefícios para todos, incluindo os Estados “fortes”, que terão nos Estados agora aliviados, mercados com apetência e capacidade para adquirirem os bens e serviços que os “fortes” produzem. Mais uma vez, é uma questão de inteligência ou estupidez, de visão estratégica ou de demagogia.

   Deixar falir os bancos

   Desde 2008, a palavra de ordem na UE foi “salvar todos os bancos”, ou “não deixar falir nenhum banco”. Esta política foi adoptada por terror ao perigo sistémico, ou seja, à crença de que, se um banco falisse, todos os outros iriam atrás e haveria uma catadupa de falências, um efeito dominó com consequências catastróficas.
   Não fazendo apelo a um sem número de teorias da conspiração que apontam para os próprios bancos, como sendo os autores desta tese (privatizar os lucros, socializar os prejuízos), a verdade é que este perigo não é, pura e simplesmente real, como demonstram muitos e bons economistas, para quem quiser informar-se.
   Com efeito, existem milhares de bancos na Europa, e se alguns falissem, os seus prejuízos desapareceriam e os seus activos seriam tomados pelos seus credores, como, de resto, acontece em qualquer outro ramo de actividade económica. A carteira de títulos, as hipotecas, os depósitos, mudariam apenas de mãos; os depositantes passariam a levantar dinheiro noutro banco. Uma eventual “limpeza” dos maus bancos seria até profilática e, por isso, benéfica.
   Alguns dirão: Não podemos arriscar porque se um banco vai à falência, outros se seguirão. Respondemos: Se é certo que, numa fase inicial, quanto mais bancos falirem, mais falências se seguirão, não é menos certo que quanto mais falências houver, mais perto se aproxima o momento em que as falências diminuirão, porque o número de bancos no mercado diminui. Logo, haverá mais mercado e uma maior consolidação por parte dos bancos sobreviventes. Deste modo, os bancos consolidam, não porque recebem injecções de capital, mas porque absorvem as disponibilidades do mercado, tal como acontece em qualquer outra indústria.
   E os bancos “demasiadamente grandes para falir”? Resposta: Ninguém (ou nenhum banco) é demasiadamente grande para falir. A dimensão dos bancos pode ser controlada por via legislativa, com reforço da supervisão e, eventualmente, com legislação “anti trust”, obrigando os bancos demasiado grandes a dividirem-se em bancos comerciais e bancos de investimento, dividindo deste modo, quer a dimensão propriamente dita, quer os riscos associados a essa dimensão. Para além disso, a história ensina-nos que a um período de consolidação marcado por fusões e aquisições, segue-se um período de cisões e novas incorporações, ou seja novos actores no mercado. No fundo, os bancos pedem aos governos para que estes limitem os danos inerentes à lógica capitalista. Sejamos, pois, um pouco cínicos e deixemos o “mercado funcionar”. E quando um banqueiro aflito pedir ajuda, possamos nós responder: “It’s the economy, stupid!”.  

   REFORMAR A EUROPA: AS INSTITUIÇÕES

   Já discorremos supra acerca das instituições europeias e comparámos estas com as americanas. Pois bem, que reforma propomos para a Europa? A Europa que, de facto, já é uma federação, deve finalmente assumir-se como tal e fundar uma constituição. Do nosso ponto de vista, a política europeia deve nortear-se pelos seguintes princípios, no que concerne à sua constituição política:
   Primeiro princípio: Separação de poderes entre os Estados Membros e a União. Cada Estado tem os seus órgãos próprios de governo, mas estes não exercerão qualquer tipo de poder ou influência nos órgãos de poder da federação. A jurisdição dos órgãos estaduais não se estenderá aos órgãos federais. Nenhum chefe de estado ou de governo nacional terá qualquer poder nas instâncias federais. Cada macaco no seu galho.
   Segundo princípio: Primado da democracia sobre a plutocracia. Legitimidade e legitimação. Escrutínio e responsabilização. Os órgãos de poder da federação europeia serão eleitos por sufrágio dos eleitores europeus. Cada órgão será independente dos restantes, isto é, nenhum órgão será nomeado ou escolhido por outro, nenhum órgão poderá demitir outro, salvo em casos muito excepcionais. O órgão executivo será escrutinado pelo legislativo. As decisões advirão do debate, do consenso e do compromisso e não da imposição da vontade egoística de um ou mais Estados sobre os demais.
   Terceiro princípio: Coexistência dos princípios da universalidade e da proporcionalidade. Será assegurado o equilíbrio necessário entre a representação dos Estados e a representação dos povos. A proporcionalidade deve ser directa, ou seja, os povos devem fazer-se representar mediante a sua própria vontade, e não mediante os Estados a que pertencem. E estes devem fazer-se representar por representantes próprios, eleitos propositadamente para a função, e não por delegados dos órgãos nacionais (governo).
   Fundados nestes princípios, propomos a constituição de três órgãos de poder.
   O poder executivo será exercido por um presidente, que será, de entre vários, o candidato eleito com a maioria dos votos dos europeus. Este formará governo livremente, sem o constrangimento actual de ter que escolher dois alemães e um holandês, ou dois franceses e um austríaco. Escolherá, pois, segundo os critérios da competência técnica e da solidariedade política, pouco importando que no elenco governativo figurem três belgas e nenhum polaco, posto que os escolhidos sejam os mais adequados para a pasta que ocupam. O Presidente – e o seu governo – terá a cabo a condução da política geral da União, bem como a sua representação externa.    
   O poder legislativo será exercido em comum por dois órgãos, o Senado e o Parlamento.
   O Senado será eleito segundo um princípio de universalidade e terá assim a seu cargo a representação dos Estados. Se forem dois senadores por estado, será composto por 56 senadores, se forem 3 por Estado, 84, o que se nos afigura mais desejável, já que as estruturas multipartidárias avultam sobre as bipartidárias. Nenhum Estado terá sequer a veleidade, num universo de 84 senadores, de impor pontos de vista nacionais, pois não terá sucesso. Vigorará o consenso e o compromisso. O Senado terá como atribuições aprovar as decisões mais relevantes para a vida da União, validar os membros do governo e destituir, se for o caso, o presidente, se este praticar actos de elevadíssima gravidade. Ratificará, também, certas categorias de decisões do Parlamento.
   Por sua vez, este será eleito segundo um princípio de proporcionalidade. Os estados com maior número de eleitores terão um maior número de representantes. E estes serão eleitos por partidos, de modo a representar as diferentes sensibilidades. O Parlamento terá a tarefa de escrutinar a acção do Governo e de cooperar com ele na elaboração das leis comunitárias. Mais uma vez, prevalecerá a lógica europeia, ou federal, sobre os interesses nacionais, visto que num conjunto de várias centenas de deputados, nenhum estado terá o número suficiente de deputados para impor a sua vontade, nem estes se porão de acordo entre si, já que, se é certo que a nacionalidade os une, não é menos certo que os partidos e a ideologia de onde provêem, os separam.
   Em consequência com o que propomos, o Conselho Europeu deve dar lugar ao Senado, e a Comissão Europeia deve desaparecer para em seu lado surgir o Governo. Os poderes do Parlamento devem ser reforçados. Deste modo, teremos um governo “do povo, pelo povo, para o povo” (A. Lincoln) e não uma plutocracia opaca e não democrática que toma decisões nas costas dos europeus e na qual estes decididamente não se revêm.


   CONCLUSÃO

   Olhar para o futuro com esperança. Abandonar os velhos clichés do crescimento e emprego vs austeridade, do crescimento perpétuo do PIB, da obsessão com o défice e a dívida. Deixar de lado as discussões sobre as culpas do passado. Abordar de uma forma nova e criativa os problemas que enfrentamos e encontrar soluções que os resolvam, sem medo de tentar o que ainda não foi experimentado.
   Transformar corajosamente a nossa democracia e moldá-la para o nosso século. Pugnar por uma melhor democracia. Mais e não menos representatividade, legitimidade, legitimação, responsabilização, em suma, incrementar a qualidade da nossa democracia, de modo a que os povos tenham orgulho e confiança em quem os representa e estes exerçam um verdadeiro mandato, ou seja, actuem em nome por conta e no interesse de quem os elegeu.
   Dar uma importância decisiva à economia e ao seu núcleo fundamental, a empresa, enquanto geradora de valor e de valores e enquanto geradora de emprego e elos comunitários. Repor a ética na economia. Colocar a riqueza ao serviço da comunidade e dos povos é muito mais inteligente do que retê-la para pequenos grupos. Focar o nosso esforço no desenvolvimento e a qualidade, em vez do crescimento e a quantidade. Para novos problemas, novas soluções. Inteligência e criatividade.
   Respeito pelas pessoas, seja pelo indivíduo, seja pelos povos e pelas culturas. Um país de cidadãos e não de “privilegiados” e “desfavorecidos”, onde todos tenham iguais e reais oportunidades e apoios, pois é no interesse de todos que todos possam singrar na vida. Uma Europa de cidadãos e povos em que aquilo que nos une valha mais do que o que nos separa. Uma Europa não só economicamente rica, mas social e culturalmente rica, também. Uma Europa das pessoas e dos cidadãos por oposição à actual Europa do dinheiro e dos plutocratas.
   Respeito, enfim pelo nosso planeta, do qual somos meros usufrutuários. Cuidemos dele, pois é o único que temos. Que possamos entregá-lo aos nossos filhos em melhor estado do que aquele em que nos foi entregue pelos nossos pais.

   Tudo é incerto e derradeiro
   Tudo é disperso, nada é inteiro.
   Ó Portugal, hoje és nevoeiro…
É a Hora! 
FERNANDO PESSOA


domingo, 21 de julho de 2013

Vós que entrais, deixai toda a esperança



Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate."

Dante Alighieri
Divina comédia. Inferno, canto III



 Ilustração de Gustave Doré para a "Divina Comédia"

Cavaco decidiu, está decidido. Conforme havíamos dito anteriormente, uma das hipóteses para a resolução da crise política aberta com a demissão de Gaspar e a comédia de enganos que se seguiu era a continuação do governo. E ela aí está.  O presidente optou por uma solução que reconheceu ser má e à qual não deu crédito na sua mensagem de 10 de Julho. Mas o medo de eleições e as consequências imprevisíveis da “vontade do povo” impeliram a pitonisa de Boliqueime a optar por esta má solução, já que tudo é preferível ao exercício da democracia.
   Estará agarrado ao governo e será o presidente – o primeiro – que, perante uma gravíssima crise de confiança e disfuncionalidade das instituições democráticas, não deu a palavra aos eleitores.
   Numa manobra muito pouco inteligente, tentou amarrar o PS a um acordo de “salvação nacional” (“tudo pela nação, nada contra a nação”, como dizia o seu grande mentor e ídolo, Oliveira Salazar) para se salvar a ele próprio desta tão evidente colagem, julgando que conseguiria pairar acima dos partidos. Enganou-se. Teve que assumir publicamente o apoio ao governo e assim vai afundar-se com ele.
   Passos respira de alívio: Pode continuar com as suas negociatas e privatizações e prosseguir com a sua cruzada ideológica contra o Estado, apesar de comer na sua gamela. E desiludam-se todos aqueles que acham que o governo se demitirá, sejam quais forem as circunstâncias; Nem o segundo resgate, que aí estará, mais dia menos dia, nem uma estrondosa derrota nas autárquicas demoverá o nosso homem de “negócios”. Ele está no governo para levar até ao fim a sua missão; Enquanto todo o Estado não for privatizado, enquanto a matilha não estiver saciada, a luta continua.
   O irrevogável Portas está eufórico: Vai finalmente governar com 12% de votos e mostrar a sua valia como negociador. Estamos curiosos. Depois de ter brincado aos ministros com dois ministérios inócuos (Defesa e Negócios Estrangeiros), agora tem finalmente uma prova de fogo. Vamos assistir de camarote às piruetas do artista.
   Entretanto, quatro mil ou mais “trabalhadores” que nas últimas semanas viveram com o credo na boca, respiram de alívio: Já não vão para a rua na véspera de Natal. Referimo-nos, claro, aos boys e girls dos aparelhos dos partidos que sustentam o governo. Tudo está bem quando acaba bem.
   Seguro, mais fragilizado do que nunca, ao menos não foi posto na rua por indecente e má figura porque não assinou. Ficou, no entanto, evidente que ele só é líder porque o deixam, e não porque quer. Não possui qualquer domínio sobre o partido. Mas mostrou também que não sabe negociar (levar o manifesto eleitoral para a mesa de negociações quando o que se impunha era divisar a estratégia para renegociar com a Troika? Que infantilidade é esta?) e que, sem visão nem estratégia mas apenas com medidas avulsas, não tem programa. É um líder a prazo. E o seu prazo terminará antes das eleições. Costa terá tempo para ganhar em Lisboa e lançar-se à conquista do governo.
   Resta o bom povo português, entalado entre a inevitabilidade da austeridade e a raiva inconsequente, cada vez mais esbulhado na sua fazenda e ofendido na sua dignidade. Quando tomar a palavra, não será já tarde demais?




terça-feira, 16 de julho de 2013

DUAS PROPOSTAS DE COMUNICADO DO PS APÓS A MENSAGEM DE SUA EXCELÊNCIA O PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Escrito antes do meio dia de hoje.



A liderança do PS é fraca. Os percursos de António José Seguro e de Pedro Passos Coelho são perturbadoramente similares, o que faz antever o pior, caso o primeiro venha a assumir responsabilidades governativas. E, ao contrário do PSD, no PS há gente atenta, à espreita e à espera do momento oportuno para avançar.

   Ao aceitar negociar, Seguro, dando-se ares de “homem de Estado”, mais não fez do que cair numa esparrela óbvia e pouco inteligente montada por Cavaco. Sem necessidade, tomou a responsabilidade de tentar resolver problemas que não eram seus, colocou-se voluntariamente sob a asa do Presidente e no mesmo saco com o governo, seja qual for o desfecho do “compromisso”.

    Se houver fumo branco nas negociações, e a menos que Seguro consiga uma imprevisível e estrondosa vitória, como seja a anulação do corte dos 4.700 milhões, a anulação do escandaloso processo de despedimento colectivo na Função Pública a coberto da hipócrita “mobilidade especial”, a anulação no corte das pensões, a baixa de impostos, etc., o PS deitará para o lixo dois anos de oposição. Milhões de portugueses, quer os que já estariam dispostos a votar PS, quer os traídos pelo PSD, não saberão em quem votar nas próximas eleições. Provavelmente, a abstenção será muito superior a 50% e o epíteto “são todos iguais” será – e com justiça – lançado sobre todos os partidos do “arco”, dando assim razão aos que dizem não haver necessidade de eleições. As despesas da oposição serão entregues por inteiro ao PCP e ao BE, cuja representação parlamentar irá crescer, quer pelo aumento de votos, quer pela abstenção. E Seguro será arredado da chefia do PS, já que os seus adversários se perfilam para lhe retirar o poder, sendo uma capitulação neste “compromisso”, mais do que justa causa para o seu despedimento, apesar das votações “albanesas” do último congresso.

    Se não houver acordo (ainda assim, o mais provável dos cenários), Seguro será acusado de ser o responsável pelo fracasso, porque impôs condições “impossíveis” face ao regime de protectorado, os compromissos com os credores, etc., isto é, o costumeiro chorrilho de asneiras e mentiras tão caras à direita e aos seus comentadores. É uma “loose-loose situation”.

   Isto só acontece porque a liderança fraca e mole de Seguro configura-se como uma mera alternância e não como alternativa. Nada na sua acção ou no seu discurso é novo ou diferente. Seguro não cativa, não empolga, não entusiasma, não divide as águas, não apresenta uma visão e estratégia para o futuro, não dá esperança, não convence. E a direita sendo má, sabe que o PS não está melhor. Fosse outro, o líder, e já teríamos eleições antecipadas há muito tempo.

  

DUAS PROPOSTAS DE COMUNICADO DO PS APÓS A MENSAGEM DE SUA EXCELÊNCIA O PRESIDENTE DA REPÚBLICA

PROPOSTA UM

1- O Partido Socialista escutou atentamente a mensagem de sua excelência, o Presidente da República. Nela constata que:
a) Não é mencionado o facto de que a crise política que ora vivemos ter sido despoletada pela demissão do Ministro Vítor Gaspar e a sua carta, na qual confessa o rotundo fracasso da política seguida pelo governo;
b) Que a continuação desta crise foi motivada pela nomeação da nova ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque – nomeada para prosseguir, note-se, a política confessamente fracassada de Vítor Gaspar – o que levou à apresentação do pedido de demissão do ministro Paulo Portas;
c) Que, posteriormente, houve um entendimento entre os partidos que sustentam a coligação e que detêm maioria parlamentar na Assembleia da República, no sentido de haver uma remodelação e a consequente continuação em funções do governo.

2- Na mensagem do senhor Presidente, é formulado um convite ao Partido Socialista, no sentido de este encetar negociações com os dois partidos da coligação ainda no poder, com vista à obtenção de um “compromisso de salvação nacional”.

3- Do ponto de vista do PS, quem colocou o país na posição de necessitar de ser salvo foi a direita – O PSD e o CDS – e não o PS. Com efeito:
a) Não foi o PS que derrubou o anterior governo, precipitando o país para o resgate e para as mãos da Troika;
b) Não foi o PS quem, durante os últimos dois anos, prosseguiu uma política cega “para além da Troika” que teve como consequências os desastres financeiro, económico e social em que hoje o país se encontra;
c) Não foi o PS que inviabilizou qualquer hipótese de compromisso durante os últimos dois anos, apesar da disponibilidade que este sempre demonstrou.

4-  O país tem quer salvo, não por meio de um “compromisso” negociado com quem colocou Portugal em estado de calamidade, mas sim pela acção de um novo governo, legítimo, saído de eleições, nas quais o povo português possa expressar livremente a sua escolha.

5-  Foi este mesmo entendimento que foi expressado ao senhor Presidente da República.

6- Porém, o senhor Presidente entendeu decidir de modo diferente, não dissolvendo a Assembleia da República e não convocando eleições antecipadas. Respeitamos a decisão, mas não podemos concordar com ela.

7- Mantendo-se o actual governo em funções, cabe a este e só a este a responsabilidade de tirar o país do estado de calamidade em que o colocou.

8- O Partido Socialista nada tem a negociar com a direita, pelo que declina o convite publicamente formulado pelo senhor Presidente da República no seu comunicado.

Lisboa, 10 de Julho de 2013


PROPOSTA DOIS

Querem um toalhete? Limpem as mãos à parede!

sexta-feira, 12 de julho de 2013

O PAI UBU



O PAI UBU





    Cavaco Silva é o político há mais tempo em actividade em Portugal. Ministro das finanças um ano, primeiro ministro dez anos, Cavaco é presidente desde 2006. Se não morrer nem for interditado ou destituído até ao final do mandato, quando sair terá completado vinte e um anos de poder.
    Em 2009, em plena crise mundial, o Partido Socialista perde a maioria absoluta e forma governo minoritário. Cavaco, que também formou um governo sem maioria, a sua primeira experiência enquanto chefe de governo, bem sabia quais as dificuldades que o governo iria enfrentar, ainda para mais, num ambiente de aguda crise e forte incerteza. Não obstante, permitiu que se formasse o governo naquelas circunstâncias, apesar de não ignorar as consequências.
    Em 2011, com o seu beneplácito, a direita – ajudada pelo Partido Comunista e Bloco de Esquerda, ambos sempre prontos para derrubar o PS, sejam quais forem as circunstâncias e as consequências – derruba o governo minoritário, precipitando o país para o resgate e o pedido de “ajuda” externa. Para Cavaco, este configurava-se como o melhor dos cenários para exercer a sua influência e acabar em grande a sua carreira política: Uma maioria de direita sob a sua égide, a canga do programa de resgate desenhado pelos seus ídolos, o FMI e os eurocratas de Bruxelas, aposto sobre o governo, enfim, as condicionantes de um “programa de governo” externo que iria colocar o país no rumo certo: o seu rumo.
    Porém, nestes planos de mentes brilhantes, há sempre algo que não corre bem. No caso, a confrangedora falta de liderança, inteligência e preparação do Primeiro Ministro Passos Coelho que, sem saber governar, entregou as rédeas do poder a um taliban da contabilidade, um lunático da austeridade chamado Vítor Gaspar. Este actuou como uma espécie de Joseph Mengele das finanças: Uma vez na posse do poder, deu largas à sua perversidade, fazendo experiências pseudocientíficas com a economia e o povo português, infligindo a este último, estúpidos e inúteis sacrifícios com gravíssimas consequências para o presente e o futuro.
    Dois anos depois, Gaspar, exaurido pelos consecutivos falhanços, dorido de tanto chocar com a realidade e sem margem de manobra para continuar a sua sádica política, retira-se, não, sem antes, confessar que falhou. Que faz Passos? Sabendo com antecedência que é preciso arranjar um substituo para Gaspar, o primeiro ministro faz subir a secretária de Estado do Tesouro à cúpula das finanças. Justificação: É a pessoa ideal para dar continuidade à política de Gaspar, ou seja, insiste obtusamente no erro.
    Entretanto, Portas, sob Gaspar, foi humilhado e ofendido, engoliu sapos, rãs, cobras, lagartos e toda a sorte de animais peçonhentos, participando num governo do qual diria o que Maomé não diz do toucinho, se estivesse na oposição, já que a política do governo a que pertence representa tudo o que o CDS rejeita. Mas Portas aguentou como um mártir da fé, tudo sempre em nome da sacra estabilidade, e para que se evitasse um segundo resgate, e já agora à espera de uma oportunidade. E esta acaba por surgir. Uma vez livre de Gaspar, julgou chegar a hora de inverter a política do governo. Porém, apanhado de surpresa pela escolha de Albuquerque para as finanças, entendeu não ter espaço no governo e demitiu-se. A demissão de Portas deve-se, pois, estritamente a razões políticas: Não quero Gaspar porque a sua política é errada, ainda que tenha que o suportar em nome da estabilidade; Sai Gaspar, então surge a oportunidade de mudar de política; Entra Albuquerque, então a política é para manter; Se a política é para manter, então saio eu, porque sou contra a política seguida e não quero que ela continue.
    Até aqui, assistimos a um drama mais ou menos canónico. Porém, surge então o absurdo: Passos, aterrado com o segundo resgate à porta, impede Portas de se demitir e, qual vítima de assalto à mão armada, dá tudo o que este quer. Afinal, se antes tinha entregue o poder a Gaspar, porque não entregá-lo agora a Portas? De qualquer modo, não seria ele a governar, já que não imagina o que isso seja. O seu cargo é o de “primeiro ministro não executivo”.
    Muito se tem dito de Portas. Troca tintas, salta pocinhas, homem sem palavra, etc. A nosso ver, a análise não pode incidir na personalidade, mas na política. Por mais escroque que possa ser enquanto personalidade, Portas é um animal político e é nessa perspectiva que o analisamos.
    Ora, Portas volta atrás na palavra, não porque choramingou um pouco mais por poder mas porque – na sua óptica – consegue aquilo que queria: Mudar a política do governo. E é por isso que a sua demissão deixa de fazer sentido. Senão, vejamos: Retira às finanças a negociação com a Troika, avocando-a para si, enquanto vice-primeiro ministro; Faz subir o ministro da economia a ministro de estado, equiparado, portanto, à ministra das finanças; Fica com a coordenação da economia, ou seja, em caso de empate entre a economia e as finanças, é ele a desempatar, e desempatará para o lado da economia.
    Deixemos de lado considerações futuras sobre as relações de confiança entre o vice e o primeiro ministro, se esta alteração de política seria exequível, se Portas teria capacidade de levar o barco a bom porto, se teria capacidade para negociar com a Troika, etc. A vitória de Portas na negociação configura, na realidade, uma inversão na política do governo.
    Após uma semana frenética de negociações, Passos vai várias vezes a Belém e anuncia, no sábado, uma solução para a crise política. Cavaco não só não pode alegar desconhecimento sobre as negociações, como esteve profunda e decisivamente envolvido nelas.
    Quarta feira, o presidente fala ao país. Todos esperam que, com maior ou menor relutância, aceite a proposta de Passos, até porque não se avistam no horizonte outras alternativas, avesso que é às eleições antecipadas. No entanto, em vez de resolver a crise política, o presidente prolonga-a e agudiza-a, fazendo o oposto do que são os seus deveres constitucionais. E que diz Cavaco? Três coisas.
    Primeira: Ao não mencionar sequer a demissão de Portas, a não aceitação dessa demissão por Passos, as negociações entre ambos e finalmente a solução que lhe foi apresentada, Cavaco rejeita liminarmente a proposta da coligação como se esta nunca tivesse existido. A proposta de remodelação não foi sequer considerada como uma das soluções plausíveis para resolver a crise política.
    Segunda: Com o habitual chorrilho de asneiras, lugares comuns e mentiras como justificações, (ressalve-se a única justificação atendível, a do orçamento para 2014), Cavaco rejeita antecipar as eleições para Setembro deste ano, mas, surpresa, propõe a antecipação para Junho de 2014, ou seja, quer fazer coincidir o fim da legislatura com o fim do programa de “ajuda”, de modo a que se abra um novo ciclo político com o início do período “pós Troika”. Sem satisfazer nenhum pedido nesse sentido, Cavaco aceita antecipar as eleições, discordando apenas do timing das oposições.
    Terceira: Contra aquilo que constitui o cerne da sua doutrina da interpretação que faz dos seus poderes constitucionais, Cavaco convoca os três partidos que assinaram o resgate e exige que se entendam, não só até ao termo da agora abreviada legislatura, mas também para futuro, o tal futuro “pós Troika” que, para o homem de Boliqueime, em nada se distinguirá do presente, salvo o acesso aos “mercados”. Esta esdrúxula aliança seria mediada por uma “personalidade” e os partidos terão que se pôr de acordo “rapidamente”.
    O país ficou aturdido. Que quer o homem dizer com isto?
    Em primeiro lugar, ao recusar a proposta de Portas/Passos, o presidente contradiz-se com toda a sua anterior e reiterada prática. Ainda na semana precedente, o presidente disse alto e bom som que o governo depende da Assembleia e não dele. Ora, como compaginar esta estreita visão constitucional das suas responsabilidades com a recusa de uma solução de governabilidade saída do quadro parlamentar e, por conseguinte, da maioria existente?
    Duas interpretações: Cavaco é malino, mesquinho, vingativo. Não perdoa a Portas ferroadas do passado e aproveita agora o ensejo para servir fria a vingança, atribuindo à jogada deste uma vitória de Pirro. Ganhando a negociação, Portas fica a arfar à porta do ministério como ex-quase-vice-primeiro-ministro, cortesia do maquiavélico algarvio. Esta argumentação é fácil e sedutora, porém, inconsequente.
    A apreciação do presidente, a nosso ver, é política. Dar o aval à solução apresentada pela coligação seria aprovar a inflexão na política do governo, aprovar o endurecer no tom com a Troika, (mesmo que tal nunca viesse, como não virá, a acontecer) porventura “flexibilizar” a aplicação do programa, no limite, abrir a porta à renegociação, o que seria uma heresia, deixar enfim o registo do “bom aluno”. E é isso que Cavaco rejeita ao rejeitar o plano Portas/Passos.
    Em segundo lugar, ao convocar – ainda que condicionalmente – eleições para Junho de 2014, Cavaco demite de facto o governo, deixando-o em gestão corrente, apesar de realçar contraditóriamente que este se mantém em “plenitude de funções”. Mas, que plenitude é esta, quando o governo não vê sequer aprovado pelo presidente a remodelação que propôs? Com que autoridade e força políticas é que pode implementar as medidas que propõe ao país? Ninguém o levará a sério. Estando a prazo, o tempo corre contra o governo e a favor de quem este pretende despedir ou prejudicar. Basta fazer de Penélope e desfazer de noite o que se fez de dia, esperando pacientemente o exitus do governo, tarefa em que, por exemplo, a nossa administração pública revela uma refinada competência. Esta demissão eleva o problema da credibilidade do governo a um novo patamar; Já não se trata de acreditar ou não que o governo seja capaz de levar a cabo as suas políticas, trata-se de não acreditar que o governo esteja ao menos em funções.
    A consequência desta demissão de facto é grave: Prolonga a agonia do governo e torna a crise política num dado permanente até Junho de 2014. Ora, o governo esteve em gestão desde a TSU até à decisão do TC, isto é, de Setembro de 2012 até Março de 2013. Agora, entra novamente em gestão de Julho deste ano até Junho do próximo. Claro está que, fosse outro o primeiro ministro, e a sua demissão já teria sido apresentada. Mas não é. Para quem se arroga ser o arauto da estabilidade, Cavaco lança o país na lama durante um ano.
    Em terceiro lugar, a “santa aliança” exigida aos partidos em nome da putativa “salvação nacional” acaba por ser uma proposta, no mínimo, cretina, já que o presidente tem por certa a não participação do PS num governo que não saia de eleições. Resta, pois, que esta fórmula se resuma a um “pacto de regime” que, como todos os que o precederam, se esgota no seu anúncio. A pretensão de Cavaco é, também ela, política; com esta aliança, o objectivo é tornar irrelevante o resultado eleitoral. Seja qual for o desfecho das eleições, os três partidos estarão amarrados ao pacto “pós Troika” e as políticas terão que prosseguir como se o povo não se tivesse pronunciado.
    Chumbada a imposição da “salvação nacional”, o presidente, sibilino, deixa antever que existem outras soluções jurídico-constitucionais. Quais sejam, não disse. Não é, no entanto, difícil adivinhar:
    a) Mantém o governo a todo o custo e recusa obstinadamente qualquer demissão até Junho de 2014 (ordem a que Passos obedecerá) ou
    b) demite o governo e convoca eleições assim que o orçamento para 2014 estiver aprovado e pronto para entrar em vigor (ou seja, demite o governo em Novembro ou em Dezembro) convocando então eleições para Fevereiro ou Março.  
    Remota ainda é a hipótese de demitir já o governo (vendo-se livre de Portas) e adoptar uma solução do tipo Mário Monti, isto é, manda formar um governo  presidido por uma “personalidade” da sua inteira confiança (Manuela Ferreira Leite, sua lugar-tenente? Lobo Antunes, seu mandatário?) que tenha por objectivo o cumprimento de serviços mínimos. Limitar-se a passar os dois exames da Troika que faltam e elaborar o orçamento, mesmo sabendo que este pode chumbar. Depois, eleições, ainda antes de Junho.
    Há ainda uma hipótese que Cavaco não representa como possível, mas que poderá ser a resposta de Portas: A demissão e abandono imediato deste e da coligação e até, eventualmente, uma moção de censura apresentada pelo CDS que forçará, sem apelo nem agravo, a dissolução imediata do parlamento. Rebuscada? Sim. Mas acreditamos que Portas ainda não teve a última palavra. E dele há que esperar o inesperado.
    A solução da “salvação nacional” é, pois, uma falsa solução que não resolve, antes agudiza e prolonga a crise política. É que o presidente não tem consciência do perigo que esta “solução” representa para o regime democrático. 
 Falhando, como, com toda a probabilidade, falhará o programa de ”ajustamento”, os três partidos – PS incluído – estariam associados ao falhanço que é essencialmente do governo e da política de Gaspar. Em quem votariam os portugueses, designadamente aqueles que, não sendo comunistas nem bloquistas, rejeitam a “ajuda” dos nossos amigos de Peniche europeus? Pode o país dar-se ao luxo, nesta hora grave, de ter 60 ou 70% de abstenções?   
Deixando para os dois partidos à esquerda do PS as despesas da oposição, reuniriam estes, naturalmente toda a fúria daqueles que perderam o emprego e as empresas e a vida que tinham por causa do governo. Pode o país dar-se ao luxo de ter na próxima AR 60 ou 70 deputados que são sempre parte do problema e nunca da solução, pois recusam sempre qualquer entendimento que resulte em responsabilidade?
    Finalmente, não será este cenário eleitoral pasto fácil para demagogos mais ou menos fascistas que empunhem a bandeira do “político que é contra os políticos” e do “partido que é contra os partidos”? Já tivemos um homem muito sério que nos veio endireitar durante quarenta anos. Chegou e sobrou. É este o entendimento que Cavaco tem da democracia.
   
   


      

terça-feira, 9 de julho de 2013

Da Europa


Conclui-se o panfleto "Do estado das coisas" com o capítulo 7, dedicado à Europa.

Primeira parte


Cerimónia de assinatura da adesão à CEE em 1985.


CAPÍTULO 7
DA EUROPA

    Em 1986, o país rejubilou. Entrámos na Europa! Era o nosso novo desígnio nacional! Vinte e cinco anos depois, o contentamento parolo deu lugar a uma profunda desilusão. A Europa, afinal, não é o que parecia ser. Antes, porém, as ajudas recebidas nos anos oitenta sustentaram um crescimento contínuo e – supunham os sábios da economia – perpétuo e imparável. Eram os dias da tese da “convergência”, que se enunciava sensivelmente assim: Se a nossa taxa de crescimento for superior à média da taxa europeia, estaremos a convergir e, por conseguinte a “aproximar” dos padrões de conforto e de qualidade de vida dos nossos parceiros. Era o tempo em que se achava (e muitos ainda acham) que o crescimento conduz ao desenvolvimento. O que aconteceu às toneladas de dinheiro enviadas pela Europa, todos sabem e já aludimos a esse modelo estafado de crescimento. Engordaram os bancos, engordaram as empresas de construção, os conversores de terrenos agrícolas em urbanos, sem esquecer as tais empresas criadas à medida (as tais que invariavelmente pertencem à prima, ao sobrinho, ao cunhado, à nora dos políticos profissionais) que fizeram os estudos, os pareceres, as assessorias, as formações, etc. Pese embora um inegável desenvolvimento, os recursos poderiam e deveriam ter sido muito mais bem empregues. Porém, de nada vale chorar sobre leite derramado. Adiante.
    A verdade é que, para o bem e para o mal, estamos casados com a Europa. E esta está a desagregar-se perante os nossos olhos. O que é um perigo. Sempre que as nações do velho continente estiveram unidas – de livre vontade ou à força – houve paz. Sempre que cada um tentou tratar de si, a Europa, mais cedo ou mais tarde, resvalou para a guerra. E como sabemos nós, europeus, guerrear, pois não fizemos outra coisa, com alguns intervalos, é certo, nos últimos três mil anos.
    Estamos, pois, amarrados à Europa. Mais do que à UE, estamos amarrados ao Euro, a moeda “única”. Por isso, dizem-nos, temos que acatar as decisões de Bruxelas, senão teremos que sair do Euro. Mas, permitam duas perguntas: Em que consistem as políticas europeias? E em que consiste o Euro?

    AS POLÍTICAS EUROPEIAS

    Podíamos ilustrar as políticas europeias percorrendo o calendário de uma semana, já que todas são iguais.
    Segunda feira: Os mercados estão nervosos devido à indefinição vinda de Bruxelas e as incertezas quanto ao futuro da moeda única. O Euro desvaloriza, os juros sobem e as bolsas caem.
    Terça feira: Um qualquer mangas de alpaca da Comissão Europeia ou do Eurogrupo (uma espécie de “Conselho de Ministros” da zona Euro) vem à imprensa dizer uma qualquer banalidade do tipo: “A Europa tudo fará para proteger o Euro” ou “Tomaremos todas as medidas necessárias para preservar a moeda única”. Os mercados reagem a estas ou outras baboseiras ocas e o Euro sobe, os juros baixam e as bolsas ficam em alta.
    Quarta feira: São divulgados alguns das várias centenas de indicadores económicos, cuja importância isolada é absolutamente inconsequente, mas que causam impacto nos noticiários. Esses indicadores são invariavelmente negativos e atingem particularmente um determinado país da zona Euro. Os mercados reagem. O Euro desce, os juros sobem, a Bolsa afunda.
    Quinta feira: O governo do país particularmente atingido pela divulgação dos indicadores económicos negativos reúne-se de emergência e, depois de conferenciar com Bruxelas e Berlim, faz o anúncio formal de que vai implementar um ambicioso programa de “Reformas Estruturais” e tomar medidas para “Disciplinar as contas públicas”. Este programa implica o aumento de impostos, cortes e austeridade. Um badameco em Bruxelas diz com ar de contentamento que o governo vai “na direcção certa” e outros chefes de governo aplaudem as “medidas corajosas”. A Bolsa fica em alta, o Euro valoriza e os juros caem.
    Sexta feira: Num blogue, jornal ou canal de televisão, alguém diz ou escreve que o rei vai nu. As “reformas estruturais” não são reformas nem são estruturais porquanto apenas se limitam a cortar serviços públicos, salários e pensões, bem como a aumentar impostos, e alerta-se para a espiral recessiva concluindo que assim não vamos lá. Os mercados ficam deprimidos, a Bolsa cai, o Euro desvaloriza e os juros sobem. Depois, voltamos à segunda feira e o ciclo repete-se até à náusea.  
      Andamos neste carrossel desde, pelo menos, 2008, o ano em que o céu nos caiu na cabeça, como diriam os gauleses. Porque é tão indefinida (ou ausente) a política europeia? Será que as pessoas que estão à frente das instituições europeias ou os seus chefes de governo não sabem o que andam a fazer?
    Seria fácil respondermos afirmativamente à ultima pergunta e, de facto, as estupidezes verborreiadas pelas instâncias europeias são tantas e tão constantes, que é grande, a tentação de pensarmos que afinal somos governados por um renque de mentecaptos. Porém, como em tudo na vida, as coisas não são tão simples como parecem, e a resposta é um pouco mais complexa. A Europa não faz política porque não tem meios para a fazer.

    BREVE HISTÓRIA DA EUROPA UNIDA

    A guerra de 1939-1945, devastou o continente. Mais de quarenta milhões de pessoas morreram na Europa, entre elas, mais população civil do que militar, vítimas de bombardeamentos, ocupação, repressão, fome, doenças, deportações, limpezas étnicas e assassínios em massa. Dezenas de milhões de feridos e incapacitados, de órfãos, viúvas e viúvos, milhões de vidas suprimidas ou alteradas para sempre pelo curso da Guerra.
    A Alemanha foi dividida e ocupada e cerca de um terço do seu território perdido para os países vencedores, o que levou a uma imigração forçada de cerca de quinze milhões de pessoas. Outros territórios sofreram um rearranjo de fronteiras no centro e leste da Europa e também mudaram de mãos, e outros tantos milhões de refugiados polacos, russos, ucranianos, romenos, húngaros e eslovacos foram deportados e andaram com os seus poucos haveres às costas de país para país.
    As infraestruturas e as cidades foram quase completamente destruídas. A indústria (que havia sido convertida em indústria de guerra) dizimada. A agricultura, mercê das sortes da guerra, abandonada. A paz tinha sido conseguida à custa de um preço elevadíssimo, demasiado elevado para que alguma vez os europeus pensassem sequer em ser possível voltar a repetir semelhante catástrofe no continente. Era preciso enterrar definitivamente as causas das desavenças do passado. E entre estas, avultava desde logo a histórica rivalidade entre a França e a Alemanha e as rivalidades entre praticamente todos os países europeus. A história havia ensinado que os aliados de hoje bem poderiam ser os inimigos de amanhã. A acrescentar a esta necessidade de união para prevenir futuras guerras, estava em curso outra guerra, felizmente fria, fruto da ocupação soviética da Europa oriental. Todos estes condicionalismos não só convidaram, mas também forçaram a um entendimento doravante diferente entre os antigos beligerantes.
    A construção da Europa Unida deu-se em diversas fases. A primeira, a união franco-alemã para o carvão e o aço em 1951. Depois, a criação da comunidade económica europeia, em Roma, que juntava àqueles dois países, a Itália e os três países do Benelux, Holanda, Bélgica e Luxemburgo, em 1957. Em 1973, mais três países se juntam à CEE: A Dinamarca e os dois estados das ilhas britânicas, Irlanda e Reino Unido. Em 1981 é a vez da Grécia, livre da ditadura, se tornar o décimo membro. Cinco anos depois, os dois estados ibéricos, Portugal e Espanha, ambos, como a Grécia, finalmente livres de ditaduras, juntam-se à Europa. Por 1992, alteram-se as regras de funcionamento e até o nome, que passa para UE: União Europeia, significando esta mudança, também uma vontade de integração que não se ficasse apenas pelos aspectos económicos. Em 1995, novo alargamento, com a Finlândia, a Suécia e a Áustria. Finalmente, em 2004, dá-se a maior adesão: dez países, entre os quais as antigas repúblicas soviéticas do Báltico, Letónia, Lituânia e Estónia, bem como outros países que se libertaram do jugo comunista na sequência das revoluções de 1989-1990 que se seguiram ao desmoronar do império soviético: Hungria, Polónia, República Checa, Eslováquia (estes dois países, na sequência da secessão deste último e consequente fim da Checoslováquia) e a Eslovénia, a única ex-república Jugoslava a juntar-se até então à UE. Aderiram também dois minúsculos países-ilha do Mediterrâneo: Malta e Chipre. Já depois deste alargamento, em 2007, outros dois países da Europa Oriental, Bulgária e Roménia, tornaram-se membros, elevando deste modo o número de países para 27 e uma área geográfica que vai do Mar do Norte ao Mediterrâneo Oriental, do Báltico ao Oceano Atlântico e do Círculo Polar Àrtico ao Estreito de Gibraltar, às portas de África. Recentemente, foi a vez da Croácia, outra ex-república jugoslava, se juntar à UE.
  
    As teses da construção europeia.

    Durante este percurso, a união foi sendo construída mediante um processo moroso de avanços e recuos. Desde o início, duas teses subjazem à construção europeia: A tese institucional e a tese federalista.

    A construção por via institucional.

    Esta tese é mais cara aos partidos e governos oriundos da direita ou dos sectores conservadores. Parte do pressuposto que a união é um work in progress, ou seja, é algo necessariamente moroso e que inevitavelmente durará gerações. A integração e união das políticas deve fazer-se mediante pequenos passos muito bem estudados. E a evolução deve ser quase imperceptível, lenta, mas segura. No fundo, os estados deverão conservar a sua independência, sendo a União, um conjunto de entendimentos que revestem a forma jurídica de tratados, pelo quais os estados aceitam no seu próprio interesse, ceder um pouco da sua soberania para poderem ter um pouco de soberania partilhada nas instâncias europeias. A união resume-se a um conjunto de mecanismos que permite a obtenção de economias de escala, o levantar lento mas progressivo de barreiras à livre circulação de capitais, bens, serviços e pessoas. No fim de contas, para os partidários desta tese, a união consiste num conjunto de vantagens que cada país, no seu próprio interesse egoístico, goza, a troco da cedência de um pouco de soberania, mas apenas a necessária e suficiente para assegurar as referidas vantagens. Uma união política plena está completamente fora de questão. Cada país deve conservar as suas idiossincrasias. Será cada um por si, excepto nos casos em que é no melhor interesse de cada um ceder um pouco para obter as tais vantagens comparativas com essa cedência. 

    A tese federalista.

    Esta tese vem sendo defendida pelos governos e partidos mais liberais ou mais à esquerda. Sendo uma tese mais voluntarista, pretende que a Europa, enquanto entidade a se, é superior, ou antes, tem um valor superior à mera soma dos seus estados membros. Assume que os europeus, pese embora toda a sua diversidade, possuem uma identidade própria. Aliás, entende que a essa diversidade de culturas representa uma das suas riquezas e não um obstáculo à concretização da união. Para alcançar este objectivo, pretendem os federalistas uma integração mais plena e mais rápida das políticas europeias. Entendem também que a Europa social, das pessoas, deve sobrepor-se à Europa económica ou dos negócios. A Europa deve ser uma assunto dos europeus e não dos governos europeus. As instituições europeias devem representar, tanto quanto possível, os povos da Europa, mais do que as suas instituições nacionais.
    A crescente integração de normas e políticas deve ter, como corolário lógico, a formação de uma Europa com órgãos de governo próprios, distintos dos governos nacionais. No futuro, haverá uma federação ou confederação de estados, os “Estados Unidos da Europa”

    Em que ponto estamos, no que diz respeito à construção europeia?



Sede da Comissão Europeia, Bruxelas.

    Para responder a esta pergunta, desviemo-nos um pouco e atentemos no edifício constitucional construído pelos nossos primogénitos, os Estados Unidos da América.
    A constituição americana, pese embora o facto de ser anterior à revolução francesa, é, como sabemos, tributária das ideias iluministas e da sede de liberdade e libertação do ancien regime que estiveram na base daquela que foi a revolução das revoluções e que marca o advento da modernidade. Assim, serão benéficos os frutos que recolhermos com a experiência dos nossos primos do outro lado do atlântico.
    Os Estados Unidos são uma república federal. Cada estado possui os seus órgãos próprios de poder. O poder executivo é exercido pelo governador, directamente eleito e cujo poder é independente do poder legislativo (ou seja, este não tem o poder de o fazer cair politicamente, tendo apenas o poder de o destituir, mas só em casos muito excepcionais). Este governador tem uma administração com vários membros, numa estrutura que podíamos comparar a um primeiro ministro e um governo, respectivamente. Este poder executivo é escrutinado por um parlamento com duas câmaras que exerce o poder legislativo, o Senado, cujos membros são eleitos segundo um princípio de universalidade, e a Câmara dos representantes, uma espécie de “Câmara Baixa” (por oposição à “Câmara alta” que será o Senado), cujos membros são eleitos segundo um princípio de proporcionalidade. Cada estado possui também a sua própria constituição e os seus próprios órgãos judiciais, incluindo um Supremo Tribunal.
    Acima dos estados e dos seus órgãos de poder, a Federação tem os seus poderes – os poderes federais, constitucionalmente atribuídos - que são exercidos em todo o território e se sobrepõem aos poderes estaduais. Como sabemos, o poder executivo é exercido pelo presidente, cuja eleição resulta das 50 eleições estaduais, que forma uma administração ou governo, diríamos nós em termos europeus. A administração é escrutinada pelo Congresso, que alberga duas câmaras, tal como os parlamentos estaduais. O Senado é a mais importante e cada estado elege dois senadores, seja a California, seja o Wyoming. Subjaz aqui, pois um princípio de universalidade no que à eleição do senado diz respeito. Todos os estados são iguais entre si em dignidade e direitos, independentemente da extensão do seu território, do número da sua população ou da importância da sua economia, pelo que cada um é representado por dois senadores por igual. Já na Câmara dos Representantes, os congressistas são eleitos segundo a representação populacional, ou seja, os estados mais populosos fazem eleger mais congressistas do que aqueles que têm menos eleitores. Há, pois, um compromisso entre a representação estadual (dois senadores por cada estado, grande ou pequeno) e a representação eleitoral (mais eleitores, mais representantes).
    Já na União Europeia, são completamente diferentes – porque diferentes são os pressupostos – os órgãos de poder.
    Aparte o Tribunal Europeu, os órgão políticos são o Parlamento Europeu, a Comissão Europeia e o Conselho Europeu.
    O Parlamento Europeu tem os seus membros eleitos por estado, cabendo a estes um número variável de deputados, de acordo com a sua demografia, ou seja, há aqui um princípio de proporcionalidade. Porém, os deputados candidatam-se em listas de partidos nacionais, e não europeus. Depois de eleitos, por uma razão de afinidade, agrupam-se em partidos europeus (que na verdade não existem enquanto tal). O Parlamento Europeu tem hoje mais poderes que inicialmente, mas está muito longe da importância, quer dos parlamentos nacionais, quer do Congresso americano. Para não dizer que a sua actividade é residual, diremos que, no máximo, é muito limitada. A sua escassez de poderes não tem correspondência com a sua representatividade.
    O órgão executivo é a Comissão Europeia, que executa as suas próprias directivas, mas que executa também as directivas do Conselho Europeu e implementa as decisões do Parlamento. À frente da Comissão está o Comissário Europeu, ou presidente da CE, que é uma personalidade escolhida pelo Conselho Europeu. Este, ao contrário do que sucede com qualquer Presidente ou Primeiro Ministro (consoante estejamos perante uma democracia presidencialista ou parlamentar) não é livre de escolher o seu elenco governativo baseado naqueles que são os dois princípios que devem nortear essa escolha: competência técnica e solidariedade política. Os membros da Comissão são designados pelos governos nacionais, e estes têm mais ou menos comissários, consoante a sua demografia. Em tese, o pobre Comissário pode vir a presidir a uma Comissão que tem no seu elenco simultâneamente comissários comunistas e neonazis! De ordinário, convivem no mesmo elenco, liberais, sociais democratas, conservadores, verdes/ecologistas e democratas-cristãos, ou quaisquer outras ideologias, consoante a orientação política dos governos nacionais que são quem os designa. A composição da Comissão é assim imposta pelos governos dos estados. É como se o Presidente dos EUA tivesse que ter no governo um secretário do Departamento de Estado designado pela Califórnia, um secretário de estado do tesouro imposto pelo Illinois, um secretário de estado do comércio indicado pela Florida, etc. Um outro aspecto relevante prende-se com a preocupação de fazer prevalecer o princípio da proporcionalidade num órgão desta natureza. Os países com mais população têm mais comissários e os menos populosos, menos. Mas, como o órgão, ao contrário do Parlamento, tem um número limitado de membros, esta proporcionalidade resulta distorcida. A solução encontrada para matizar este problema tem sido a criação de comissões (pastas ou ministérios, diríamos, se nos estivéssemos a referir a governos nacionais), para encaixar tanto comissário, mas a verdade é que, por um lado, muitas dessas comissões são redundantes e, por outro, as comissões “importantes” são invariavelmente cometidas aos comissários dos países dominantes.  
    Finalmente, o órgão mais importante é o Conselho Europeu. Este é composto pelos chefes de estado e de governo dos estados membros, que são, por conseguinte, pelo facto de serem Presidentes (nas democracias presidencialistas) ou Primeiros Ministros (nas democracias de tipo parlamentar), membros por inerência deste órgão. Inicialmente, o Conselho reunia a cada presidência da União, que é rotativa e dura seis meses, ou seja reunia duas vezes por ano. Ultimamente, e mercê da crise, reúne mais amiúde. Entre reuniões ou cimeiras, existem várias comissões permanentes compostas por funcionários que asseguram as negociações que precedem a próxima cimeira e a implementação das medidas tomadas na cimeira precedente. Ao contrário do que sucede na América, na Europa não há um presidente, ou antes, um órgão eleito para exercer o poder executivo. Será que poderíamos imaginar os EUA governados por um “conselho de governadores”, com os estados mais populosos e economicamente importantes a ditar a sua vontade, em vez da administração? Pois é exactamente o que sucede na Europa.
    Em suma, os traços distintivos dos órgãos de poder europeus são os seguintes:
    Dos três, apenas o Parlamento é eleito por sufrágio directo, e ainda assim em listas nacionais e não europeias, sendo este, dos três órgãos o que notoriamente tem menos poder.
    A Comissão Europeia é constituída por funcionários nomeados. O Presidente é um funcionário nomeado pelo Conselho, ao passo que os outros comissários são nomeados pelos respectivos governos nacionais. Muito embora já haja um órgão em que os membros são eleitos segundo um princípio de proporcionalidade, o Parlamento, este mesmo princípio é, ainda que de um modo altamente distorcido, observado na Comissão. Este órgão, sendo executivo, acaba por ser a longa manu do Conselho, já que os poderes de escrutínio por parte do Parlamento são muito reduzidos ou ineficazes.
    O Conselho Europeu é o órgão máximo, o que significa que, na arquitectura constitucional da União Europeia, reina o primado dos poderes nacionais sobre a Europa. Nenhum dos membros do Conselho é eleito para a função, todos são membros por inerência. Temos que recuar mais de dois mil anos para encontrar um órgão de poder com tantas e tão importantes competências em que nenhum membro é eleito por sufrágio: O Senado Romano, a quem pertenciam, por inerência, os pater familias das famílias patrícias de Roma. Neste órgão, vale o princípio da universalidade, isto é, um país, um representante. Porém, bem sabemos que a tomada de decisões não é um processo em que a negociação e o compromisso prevaleçam sobre os interesses nacionais. Pelo contrário, para cada cimeira, os chefes de estado e de governo vão defender os “interesses nacionais”, ou seja, vão a cada cimeira tentar receber mais do que aquilo que tiverem que dar.
    As decisões do Conselho, nos últimos anos, têm-se caracterizado por duas constantes: Ou são “não decisões” por puro tacitismo político, seja porque num determinado país vão ocorrer eleições gerais, ou há um referendo à porta, ou eleições regionais daí por um par de meses, ou são decisões invariavelmente impostas por um número muito reduzido de países e acatadas pelos outros, regra geral, impostas pela Alemanha, o país mais populoso e economicamente mais forte, e apoiadas pela França e pelos países do “norte” (Benelux e Escandinávia), com o Reino Unido sistematicamente de fora (como se de um não membro ou mero membro observador se tratasse).
    Temos assim uma contradição insanável entre a democracia e os poderes de representação. Só estados em que vigorem regimes democráticos é que podem aderir à União. Porém, dos três órgãos de poder, apenas um é eleito (e logo aquele que tem, de longe, menos poder), o segundo é composto por membros por inerência, e o terceiro é constituído por funcionários escolhidos pelos membros do segundo. São os governos nacionais, e não um “governo europeu”, quem manda na União. O poder não é democrático, ou seja, a composição dos órgãos, à excepção do Parlamento, resulta de uma democraticidade indirecta ou reflexa, sendo certo que um dos órgãos é que nomeia o outro. À legitimidade democrática directa, que é apanágio de qualquer democracia, a União contrapõe a não democracia europeia, um corpo de funcionários nomeados, os “Sir Humphreys” de Bruxelas (lembram-se das famosas séries “Sim, senhor Ministro” e “Sim, senhor Primeiro Ministro” em que o funcionário, Sir Humphrey dava sempre a volta ao ministro/primeiro ministro e levava sempre a água ao seu moinho?).
    Ausência de representação, falta de legitimidade, opacidade, receio da soberania popular, auto legitimação, exército de funcionários que obedecem naturalmente a quem os nomeia e que exercem um enorme poder sem qualquer legitimidade, nem responsabilização nem escrutínio. Eis a razão do impasse e da decadência da União Europeia e a razão pela qual os europeus não se revêm na sua Europa.
    Alguns dirão: Mas a Europa não é uma federação, ainda não é uma federação; é natural que sejam os estados a mandar. A esses respondemos: a Europa já é uma federação; apenas não tem os instrumentos constitucionais adequados à sua realidade. E formar esses instrumentos pressupõe, em primeiro lugar, possuir a inteligência e a visão necessárias para o reconhecer e reconhecer que sem eles a Europa definha e desaparece. Em segundo lugar, vontade política para dar esses passos, e em terceiro lugar, coragem para o fazer, sem medo dos povos, sem medo da democracia. Ora, se é certo, como já alguém disse, que vivemos a pior crise dos últimos oitenta anos, não é menos certo que por grande azar logo nos calharam os piores líderes dos últimos sessenta anos! (Não digo dos últimos oitenta, porque isso significaria que os actuais seriam piores do que Hitler, Mussolini, Franco ou Salazar, para nomear apenas alguns, o que, para já, ainda não é verdade). A liderança europeia (ou a  ausência dela) é fraca, medíocre, mesquinha, néscia, falha de visão, coragem e atitude. É o oposto do que necessitamos para os conturbados tempos em que vivemos.