quinta-feira, 30 de maio de 2013

Capítulo 4

Do estado das coisas, capítulo 4

Depois da análise e crítica dos problemas, finalmente entramos nas soluções, que é o que se precisa.

Por Camilo Castelo Negro


CAPÍTULO 4
AS SOLUÇÕES

CAMINHAR CAMINHANDO.

    Já estamos todos um pouco saturados de discorrer sobre os problemas que nos afligem, da sua origem, das causas próximas e remotas, dos seus protagonistas, vítimas e vilões. Sistematizemos, pois, as soluções. Do nosso ponto de vista, se temos um problema com a democracia, teremos de encontrar uma solução para a democracia, e não fazer experiências tentado inventar um novo sistema de governo ideal e sem falhas. Se há um problema na economia, não percamos tempo e desperdicemos energias a inventar um sistema económico que vai acabar com todos os problemas, porque a História já provou abundantemente – e com consequências desastrosas – que os sistemas perfeitos não existem. Abordemos, então as soluções em diversos planos: A democracia e a economia nacionais, a Europa em que nos inserimos e o sistema económico em que vivemos.

DA DEMOCRACIA

    Vimos anteriormente que há um evidente divórcio entre o que se convenciona chamar a “classe política” e a “sociedade civil”, ou os cidadãos. Com efeito, um dos valores da democracia que está francamente em crise é o da representatividade. Outro será o da legitimação e outro ainda, o da responsabilização ou acountability. A maior parte dos cargos de decisão – nas instâncias internacionais, nos institutos públicos, etc. – resultam de uma legitimidade lateral ou indirecta. Os candidatos a titulares de cargos políticos são previamente escolhidos por uma minoria muito reduzida de pessoas, a plutocracia dominante nos partidos, nos meios académicos, nas instituições, entre as quais avultam aquelas que referimos supra, e não existe uma responsabilização que se traduza em sanções concretas para os políticos quando estes, dolosamente, prejudicam a República.

    O que propomos?

    Propomos que a sociedade civil se sirva dos partidos, já que estes últimos se têm servido abundantemente da primeira. O que pretendemos dizer? Em vez de os candidatos a titulares de cargos políticos serem escolhidos pelo partido, seja isoladamente pelo chefe, por um grupo restrito de militantes “notáveis” (barões e caciques) ou mesmo em eleições “directas” em que participam apenas os militantes com as quotas em dia, estes candidatos devem ser escolhidos pelos eleitores em eleições primárias. Mas, vamos mais longe. Qualquer pessoa deverá poder candidatar-se por um partido, seja ou não militante, desde que a sua base programática se identifique com a do partido em questão.
    Imaginemos o seguinte cenário: Um militante “de referência” de um certo partido, um cacique local que há mais de vinte anos anda a saltitar de cargo em cargo, dá uma entrevista em que expressa a sua vontade de se candidatar à Câmara Municipal de uma das principais cidades do país. Na sequência desta entrevista, surgem na imprensa e na televisão “apoios de peso” dados por outros barões e caciques do mesmo partido. É encenada uma “vaga de fundo” protagonizada pelo candidato que visa, aos olhos dos caciques concorrentes, tornar inevitável a sua nomeação pelo partido. O resultado provável é a nomeação, sem escolha, do candidato espertalhão. Se este tiver, com o seu gesto, desafiado outro cacique, dá-se então o “contar de espingardas”, isto é, cada um conta os apoios que tem nas estruturas locais do partido: na secção A, promete-se um lugar numa empresa municipal à filha do militante com maior capacidade de influenciar os demais, e este arregimenta os 30 ou 40 votos dessa secção; na secção B, ameaça-se quem não votar em determinado candidato com o corte de verbas para a freguesia, e assim por diante. Sem nenhum programa político, sem nenhum plano de acção, a escolha do candidato faz-se ou nos media, ou na arregimentação de votos dos militantes, quer com ameaças, quer acenando vantagens mais ou menos obscuras.
    Se a escolha for efectuada por meio de eleições primárias, este cacique aparece a candidatar-se sem programa, numa entrevista. Porém, logo aparece um conhecido arquitecto dessa cidade a protagonizar uma candidatura pelo mesmo partido, apresentando concomitantemente um programa político de acção. Este outro candidato diz aos cidadãos da sua cidade o que pretende fazer, quando, como e com que meios, que objectivos tem e como pretende alcançá-los. Surge uma professora universitária que se declara candidata também por esse partido e apresenta outro programa. Um médico respeitado na comunidade também avança com uma candidatura pelo mesmo partido e apresenta o respectivo programa. Onde fica o cacique no meio disto? Pela primeira vez na vida terá que ter ideias e, mais importante, terá que apresentá-las e confrontá-las com as ideias dos outros candidatos. De nada lhe servirá contar espingardas ou arregimentar apoios no seio do partido, pois o número de votantes pode aproximar-se dos 100 mil, ao passo que os militantes locais não chegam a 5 mil. Este cacique tem que fazer um pouco mais do que encenar uma “vaga de fundo”; terá que apresentar um programa que seja melhor que o dos outros candidatos. Imaginemos então que, nessa cidade, cerca de 100 mil eleitores comparecem às urnas para votar nas primárias. Que hipóteses terá uma má candidatura? Feita a escolha neste partido, o candidato saído das primárias terá agora que se haver com os candidatos vencedores das outras primárias que ocorreram nos outros partidos. O número total de eleitores das primárias irá assemelhar-se ao número de votantes para a autarquia. Os programas são públicos e amplamente debatidos. Os candidatos não foram escolhidos por um pequeno grupo de iluminados, mas sim pelos votantes de cada partido. Melhora a qualidade dos candidatos. Melhora a qualidade do debate e do contraditório. Confrontam-se ideias e planos, e não pessoas. Melhora a participação, visto que foram os eleitores que escolheram previamente os candidatos. Melhora a democracia.     
    O que vem de ser dito para encontrar um candidato para as eleições autárquicas, pode ser extrapolado para as eleições legislativas. O “candidato” a primeiro ministro não tem forçosamente que ser o chefe do partido. Este deve ser apenas um secretário que tem funções executivas, de organização do partido, e não necessariamente o primeiro ministro em caso de vitória. Assim, tal como nas eleições presidenciais em que, quem quer ser candidato, propõe-se sem pedir ou esperar o apoio dos partidos, também para este cargo – o mais importante na nossa democracia – qualquer cidadão deve poder candidatar-se, exprimindo a sua vontade por meio da apresentação de um programa eleitoral que servirá de base ao programa de governo. Mais uma vez, estes cidadãos deverão usar as bases programáticas dos partidos já existentes que, a nosso ver, cobrem satisfatoriamente o espectro político. Se surgirem quatro ou cinco candidatos no partido A e outros quatro ou cinco no partido B e outros tantos no partido C, os eleitores ficarão elucidados quanto ao que esperar do próximo governo. As eleições serão decididas não entre personalidades, mas entre programas. A responsabilização dos titulares de cargos políticos será muito maior, porquanto a sua eleição resulta de uma escolha ampla, previamente escrutinada e esclarecida, com evidentes benefícios para a qualidade da nossa democracia.
    Objecções: Então e os partidos, para que servem, afinal, se os seus militantes perdem o “direito” de escolher previamente os candidatos? E que garantias dá o candidato escolhido pelos eleitores que seguirá as bases programáticas do partido? E a coesão do partido, não ficará este fragmentado e dividido perante a opinião pública? E qual é o interesse, então em fazer uma “carreira” na política para poder chegar a chefe quando, vindo do nada, pode irromper da sociedade civil um candidato que ultrapassa o político profissional?
    Resposta às objecções: Os partidos deixam de ser instituições cristalizadas, estados dentro do estado, agências de emprego para militantes ambiciosos. Estes passam a ser apenas voluntários, pessoas que acreditam nos ideais de um certo partido e para ele contribuem com tempo, dinheiro ou ambos. Entre os valores em confronto de poder usar um partido como base para propor uma candidatura aos eleitores, por um lado, ou manietar a escolha dos eleitores só porque se pertence a uma organização, por outro, devemos optar pelo óbvio. Ser militante de um partido não deve dar o poder de constranger a escolha dos nossos representantes. Quanto às questões relativas à unidade ou coesão do partido, esses valores são de importância residual perante os valores da legitimidade democrática e da qualidade do debate e do contraditório. Os partidos terão que se habituar à sua nova vida. A fidelidade ao partido por parte dos candidatos é uma falsa questão; um candidato que se declara por um determinado partido e depois apresenta um programa em que os votantes nesse partido não se revêm está condenado ao fracasso. Pior é quando um candidato promete ser fiel a determinadas políticas e depois, quando ganha o lugar, faz o oposto do que prometeu, comprometendo então – e de que maneira – a fidelidade aos princípios e ideais do partido. Quanto à questão da “carreira” do político profissional, a resposta é só uma: Paciência, sê melhor que os teus rivais, vai trabalhar! Não se é político, está-se na política.

    As incompatibilidades e os impedimentos: A questão dos políticos profissionais.

    Esta questão é sempre levantada com propósitos éticos muito louváveis, designadamente quanto aos deputados. Deve haver uma rigorosa estatuição de incompatibilidades entre os titulares de cargos públicos e os interesses privados de modo a que o “poder económico” não se sobreponha ao “poder político”. Esta tese é defendida ciclicamente por líderes fracos que têm problemas de disciplina interna nos seus partidos. A teia de incompatibilidades é hoje de tal forma apertada que só um político profissional, isto é, uma pessoa que não tenha vida profissional fora da política, é que está livre de incompatibilidades. Isto convém ao líder fraco, porquanto, deste modo, o deputado depende da fidelidade ao chefe para pagar a renda de casa. Uma insubordinação custar-lhe-á o cargo e, como nunca trabalhou na vida, terá, pela primeira vez, que procurar trabalho.
    Deveremos adoptar um regime de impedimentos, e não de incompatibilidades. Por princípio, nada há de mais nobre do que servir a República e, por isso ninguém deverá ser impedido de o fazer. Se um deputado trabalha na sua vida profissional para a indústria farmacêutica, tem toda a legitimidade para discutir uma proposta de lei no âmbito da defesa ou da agricultura. Se estiver em discussão uma proposta sobre o medicamento, poderá com propriedade discuti-la, visto que possui competências técnicas para o fazer. Porém, declarou, ao assumir o cargo, um registo de interesses entre os quais, no caso em concreto, que possui interesses naquela indústria. Se, da aprovação daquela lei, em concreto, puder resultar alguma espécie de vantagem para a sua empresa ou para os interesses que profissionalmente representa, o deputado deverá ser afastado da votação e substituído por outro que não tenha esse impedimento. Deste modo, a política atrairá os melhores cidadãos e não os mais ambiciosos. Com os melhores, melhor será, também, a nossa democracia.

    DA ECONOMIA

    A campanha eleitoral de 1991 nos Estado Unidos foi dominada pelo slogan de Bill Clinton – que viria a vencer as eleições – It’s the economy, stupid!, que quer dizer, numa tradução muito livre, “não vês que tudo se resume à economia?” Esta assunção de que toda a política de pouco vale se a economia não estiver a funcionar em velocidade de cruzeiro e as pessoas não tiverem dinheiro no bolso, foi bem verdadeira então e é bem verdadeira agora. De facto, na altura, o presidente recandidato George H. Bush (pai) acabara de obter, no plano interno, uma prestigiante vitória militar no Iraque, mas a economia doméstica estava de rastos, razão pela qual perdeu as eleições. De pouco lhe valeram os louvores patrióticos; o que o povo quer são dólares na carteira.
    Assim, devemos olhar para a economia como o meio de nos tirar da crise. Atenção, pois à economia.

    Que modelo económico adoptar?

    Quando nos pomos ao caminho, convém saber para onde e por onde vamos, para não nos perdermos nem nos enredarmos em labirintos dos quais não consigamos sair. Também aqui deveremos saber que economia queremos. Deixemos de parte, desde logo considerações teóricas sobre ideais de modelos económicos. O que pretendemos com definição de modelo é dizer que o actual modelo baseado na dicotomia crescimento/recessão, à qual fazemos a associação psicológica prazer/dor, não tem sentido. Deveremos, na nossa modesta e irrelevante opinião, esquecer tacticamente o PIB e o seu crescimento e concentrarmo-nos num modelo que designaremos por “desenvolvimento sustentável”, isto é, um modelo qualitativo, por oposição ao modelo de crescimento perpétuo, que é um modelo quantitativo.
    Este modelo tem por base, não um PIB, o da economia, mas sim um somatório de PIB’s: o PIB da educação, o PIB da saúde, o do empreendedorismo, o das infraestruturas, o PIB da cultura, o PIB da pobreza, da desigualdade, da inovação científica, etc. Em cada um destes e outros indicadores, medem-se parâmetros quantitativos, desde o número de mortes por doenças infecciosas no PIB da saúde ao número de espectadores que vão ao teatro no PIB da cultura, passando pela média nacional de exames de português no PIB da educação ou o número de patentes registadas no PIB da inovação. A soma de todos estes PIB’s irá dar o PIB global de desenvolvimento. Se o PIB económico de que hoje somos escravos não for satisfatório, mas os outros, sim, poderemos então mudar o nosso “chip” psicológico e sentir prazer em vez de dor. Mas, o mais certo é que, se os outros PIB’s avançarem, o PIB económico também avance.
    Critérios: Não é preciso inventar fórmulas complicadas e perder demasiado tempo a discorrer sobre modelos teóricos. Existem, hoje em dia, modelos já testados que, se forem usados sem preconceitos e em conjunto, podem ser úteis para a adopção deste modelo proposto de “desenvolvimento sustentável orientado para a qualidade”.
    Uma das fórmulas que pode ser usada com proveito é a utilizada pelo Fórum Económico Mundial, mais conhecido pelo “Fórum de Davos”, em virtude de organizar todos os Invernos naquela cidade suíça um encontro de líderes mundiais, visto por alguma esquerda pateta como um fórum de capitalistas e especuladores. Antes de afastarmos preconceituosamente esta fórmula, convém saber como é elaborado o documento essencial desta organização, o “Relatório anual global para a competitividade”.
    Devemos, antes de tudo, dizer (como aliás já referimos supra) que a competitividade não se confunde com competição e que a performance económica dos países não se resume a um concurso de beleza ou uma corrida de cavalos. Façamos por extrair a testoesterona deste conceito. Há espaço para todos e todos podem ser competitivos. Este documento mede a competitividade relativa das economias em doze “pilares”: os quatro primeiros referem-se aos “requisitos básicos”, os cinco seguintes, poderemos designá-los por “potenciadores de eficiência” e os dois últimos, “factores de inovação e sofisticação”, num total de 111 indicadores quantitativos. Estes pilares ou parâmetros têm diferentes importâncias consoante o estádio de desenvolvimento económico dos diferentes países. Para os países pouco desenvolvidos, os quatro primeiros pilares valem 60% e os dois últimos, 5%, ao passo que para os mais desenvolvidos, entre os quais se encontra o nosso país, esses primeiros quatro valem apenas 20% mas os últimos dois, 30%.
    Outro documento importante é o “Índice de Desenvolvimento Humano”, primariamente focado na medição da pobreza, mas que possui indicadores quantitativos que nos podem dar pistas para o desenvolvimento sustentado. Este documento é alvo de muitas críticas, por vezes ferozes, mas tem a virtualidade – sobretudo, se for usado em conjunto com outros – de mostrar a realidade quanto a este aspecto fundamental do desenvolvimento que é a pobreza. E não se diga que este é um problema apenas do terceiro mundo. A pobreza aniquila as hipóteses de desenvolvimento sustentado de uma nação ou região. A riqueza de um país mede-se pela sua pobreza: é rico o país que, tendencialmente, não tem pobres. Rico não é um país pleno de recursos como o petróleo, ouro, diamantes ou vastas extensões de terra arável ou mar; rico é o país em que a pobreza é residual e onde o capital humano é incluído, aproveitado e rentabilizado. Converter a pobreza de liability (encargo, fardo) em asset (proveito, mais valia), eis a chave para o desenvolvimento. Cada pessoa resgatada da pobreza é uma pessoa a menos como dependente e uma a mais como contribuinte, uma a menos que drena a riqueza e uma a mais que produz riqueza. O combate à pobreza deve fazer-se, não por piedosa comiseração ou alívio de consciência, mas deve ter um objectivo puramente económico: Converter geradores de despesa em geradores de valor.

    Estes documentos e porventura outros, quando conjugados, utilizados sem preconceitos e sistematizados, deverão dar a um bom governo as pistas para a elaboração de um bom programa de governo. Saber como governar, onde produzir impacto, ter uma estratégia e visão prospectiva e proactiva em vez de reactiva. Governar não é reagir a notícias ou entrevistas, não é fazer oposição à oposição, não é tomar medidas, quantas vezes avulsas, redundantes ou contraproducentes em reacção a um facto político ou a um aspecto particular que é do interesse de um lobby ou de um conjunto de interesses difusos. Governar é decidir, é escolher entre os interesses em conflito. A acção humana é determinada por interesses. Todos nós, diariamente, resolvemos conflitos de interesses. Governar é, pois, decidir quem vence nesses conflitos. Só uma decisão estratégica, sistematizada, que tem a visão de conjunto e olha para o futuro, informada e conhecedora, é uma boa decisão. Se um governo – o bom governo – traçar como estratégia, a de melhorar dramaticamente os parâmetros em que a nossa classificação é má, e procurar manter ou melhorar aqueles em que a nossa performance é boa, os resultados globais da governação só podem ser bons. Se os PIB's do ambiente, da pobreza, da saúde, da cultura, da ciência, da solidariedade, da educação, da segurança e bem assim todos os outros crescerem, o PIB da economia, sem que estejamos focados nele, também crescerá. Teremos assim uma sociedade e uma economia mais desenvolvidas, não porque temos crescimento, mas porque o crescimento serve e é consequência do desenvolvimento.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Estágios para jovens


Quando viu esta "pérola", o Camilo Castelo Negro desatou a rir às gargalhadas. Estágios para jovens! Número de desempregados: Mais de um milhão; número de "estágios": 5 mil. Sem comentários.

"...Quanto aos estímulos ao emprego, ou “políticas activas de emprego”, estas resumem-se a criar a ilusão de que, durante algum tempo, algumas pessoas têm algum emprego. Na verdade, os estímulos consistem em disponibilizar, por um lado, mão de obra grátis ou quase grátis para “estágios”, onde se cria a ilusão de que, se os estagiários mostrarem muita força de vontade, talvez fiquem (mas nunca ficam, porque depois de uma fornada de carne fresca, vem sempre outra ainda mais fresca), e por outro, “incentivos à contratação” ou seja, a comparticipação pelo contribuinte dos encargos da empresa, seja por isenções ou benefícios fiscais, seja por dispensa total ou parcial de pagamento da TSU, seja até por copagamento do salário. Uma vez terminados estes estímulos, todos voltam à condição inicial. Todos, não. As empresas que beneficiaram de mão de obra qualificada a preço da chuva estão mais ricas. "

Do estado das coisas, capítulo 2

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Capítulo 3 (conclusão)


Prossegue a publicação do panfleto de Camilo Castelo Negro.
Conclui-se o capítulo 3.


CRISE DO CAPITALISMO

    Desde pelo menos 1848, data do Manifesto Comunista, que o fim iminente do capitalismo está profetizado, tendo já sido encomendadas coroas de flores para o seu enterro por diversas ocasiões. Porém, a verdade é que o sistema que o haveria de substituir, o comunismo, já nasceu, floresceu, definhou e morreu de septicemia, ao passo que o capitalismo ainda continua. O capitalismo de hoje, no entanto, é muito diferente do de oitocentos e também ele, tal como a democracia, não foi inventado num laboratório mas antes é fruto de uma evolução histórica, com avanços, recuos e contradições, como tudo o que é próprio da condição humana.
    Também em 2008, os analistas e filósofos se apressaram a vaticinar o fim do capitalismo, argumentando estar este esgotado nas suas contradições e na sua perversidade e maldade intrínsecas. Sem pretender fazer a sua defesa, permito-me apenas notar que, segundo a teoria marxista, este “modo de produção” foi antecedido por dois outros, o feudalismo e o esclavagismo. Pode ser difícil apontar o pior, mas quanto ao melhor de entre eles, a escolha não deixa muitas dúvidas. Nunca, na história da humanidade, houve um salto qualitativo tão grande em tão pouco tempo, apesar de todas as contradições e atropelos que todos, unanimemente, reconhecemos e do preço elevado que muitos, demasiados, tiveram que pagar.
    Dito isto, e porque, mais uma vez, o sistema não está ameaçado (porque não se vislumbra outro melhor no horizonte para o substituir), estamos perante uma crise, sim, não do capitalismo em si, mas dos valores do capitalismo. Sim, o capitalismo também tem um quadro axiológico. Se até a máfia tem valores…
    Se compararmos os dois “modos de produção”, para utilizar a terminologia de Marx, do feudalismo e do capitalismo, verificamos que o “core”, ou seja, o âmago do feudalismo reside na propriedade da terra, ao passo que, no capitalismo, esse âmago está na propriedade do capital, ou seja, do dinheiro. Senhor feudal é o dono das terras; capitalista é o dono do dinheiro. Porém, o dinheiro, por si só, não tem uma utilidade final. Podemos usar o dinheiro para comprar alimentos ou remédios, mas as notas e as moedas não são comestíveis nem curam doenças. O dinheiro, no capitalismo, só faz sentido se estiver “aplicado”, isto é se tiver uma função reprodutiva. A uma ideia de negócio, junta-se um conjunto de factores, chamados “factores produtivos”, entre os quais, instalações físicas, matérias primas, mão de obra, etc. e produz-se um bem ou serviço que é vendido no mercado por um preço superior à soma do valor de todos esses factores que concorreram para a sua produção. A diferença, a margem, é o lucro, objectivo final da empresa.
    Temos, assim, que, mais do que o dinheiro, que é um mero meio, a empresa é que é o âmago do capitalismo. O capitalista, mais do que o dono do dinheiro, é o dono da empresa. Esta substitui a terra como o “core” do sistema.

    SUBVERSÃO DOS VALORES DA EMPRESA

    Ora, até há algumas décadas a esta parte, por definição, as empresas eram administradas pelos seus donos, ou seja, pelos seus sócios ou accionistas. A crescente complexificação da gerência, por um lado, e o distanciamento das gerações que herdaram, por oposição às gerações que construíram as empresas, por outro, levaram à introdução de um novo elemento neste quadro: o Manager ou gestor ou administrador profissional. Ontem, o dono mandava; hoje, o dono contrata um profissional para mandar por ele. Esta mudança no modelo de gestão levou à relativização dos valores da empresa. Mas, quais são os valores da empresa, enquanto entidade a se, isto é, quais os valores intrínsecos de uma empresa, de todas as empresas?
    Em primeiro lugar, a empresa aspira à perpetuidade, à continuidade. Há pois, um valor de perenidade que é conatural às empresas, a vontade de deixar a empresa às gerações vindouras e que o seu valor e importância cresçam com o passar do tempo. Uma empresa funda-se para durar para sempre.
    Um segundo valor importante é o da relação com e do impacto na comunidade. Desde logo, na comunidade interna, isto é, no conjunto de sócios ou accionistas, de colaboradores e trabalhadores. Estes deverão assimilar a cultura da empresa, isto é, o seu modo de ser e de agir e o seu posicionamento no mercado e na comunidade empresarial. Os elementos afectos a uma empresa deverão senti-la como sua, “vestir a camisola” da empresa e projectar na sua actividade diária os valores e a missão da empresa. Depois, esse sentido comunitário deve estender-se ao círculo de relações empresariais: com os fornecedores, com os clientes, com outras empresas que trabalham em estreita relação, etc. Não só os trabalhadores deverão sentir a empresa como sua, mas também os fornecedores e os clientes deverão identificar-se com a empresa e assumir os seus valores. Finalmente, a empresa deverá causar um impacto na comunidade em que se insere; na localidade onde está sediada, na região, no país, até, globalmente, se possível. As grandes empresas fundadas nos séculos XIX e XX tinham – e algumas ainda têm – hospitais, bairros, centros culturais, clubes desportivos e outras infraestruturas que testemunham o retorno que a empresa pretende devolver à comunidade e que pode ser visto, por exemplo em empresas como a Bayer, na Alemanha ou, entre nós, como era o caso da CUF. Este valor comunitário é essencial para a empresa.
    Em terceiro lugar, uma empresa diferencia-se das demais pelo valor que aporta ao mercado através dos bens que produz ou dos serviços que presta. Nisto consiste o seu traço distintivo. Assim, os bens ou serviços de uma empresa deverão distinguir-se, sobressair no mercado em função dos valores que representam: qualidade, fiabilidade, relação preço/qualidade, durabilidade, design, inovação, confiança, seriedade, credibilidade, prestígio, etc. Quando dizemos que determinado bem, por exemplo, uma caneta é a “Rolls Royce” das canetas, importamos para a caneta os valores de qualidade suprema que a marca de automóveis goza no mercado, isto é, estamos a dizer que aquela é a melhor caneta que o dinheiro pode comprar. Quando dizemos que um determinado hotel funciona como “um relógio suíço”, estamos a transferir para o estabelecimento hoteleiro os valores da indústria relogoeira suíça, isto é, queremos dizer que tudo funciona na perfeição, sem falhas nem atrasos. Ora, estes valores que as empresas transmitem ao mercado, por meio das marcas dos bens ou serviços que fabricam, são valores fundamentais, quer para o seu valor de mercado (as empresas valem aquilo que fazem), quer para a ancoragem dos valores intangíveis que mencionámos antes, ou seja, a perenidade e o impacto comunitário, intrínseco e extrínseco.
    O que sucedeu nas últimas décadas com o advento dos managers, isto é, dos gestores profissionais? Estes gestores são, como acabámos de dizer, profissionais. Eles são contratados para obter um determinado resultado. E este resultado é, invariavelmente, a criação de valor para os seus sócios ou accionistas que são, no fundo, os seus patrões. Enquanto managers, os valores intangíveis da empresa dizem-lhes pouco ou nada, pois eles não são donos das empresas, apenas as gerem. E a noção de tempo é muito diferente; para o dono da empresa, o horizonte é infinito, ao passo que para o manager, o horizonte é a duração do seu  contrato. Não há tempo nem sequer necessidade de assimilar os valores da empresa. Hoje estão a gerir uma empresa, amanhã, estarão a gerir outra, porventura concorrente da anterior.
    Assim, todos os valores que fazem parte do património da empresa são sacrificados à obtenção do lucro, e quanto mais rápido e maior, melhor. É que os managers são pagos essencialmente em função do resultado, isto é, a sua remuneração depende da sua performance, visto que a parte significativa da sua remuneração consiste no bónus ou comissão sobre os lucros obtidos, e a compensação pela saída da empresa, também. Deste modo, os valores intangíveis das empresas são postos em cheque quando estas contratam managers cuja função consiste em sobrepor o resultado da sua gestão à frente e acima de todos esses valores. O resultado é por demais conhecido: os managers empolam os lucros, escondem os prejuízos, fazem investimentos arriscados com um retorno imediato mas com consequências negativas para a empresa no longo prazo, tudo para apresentar rapidamente os maiores resultados, pois serão pagos em função deles. Terminado o contrato, recebem uma compensação choruda e partem para outra empresa, deixando a anterior em chamas. Quem vier atrás, que apague o fogo. Empresas centenárias que empregam milhares de pessoas, pagam milhões de euros em impostos e têm um impacto determinante na sua comunidade são varridas do mapa em poucos anos por CEO’s predadores que se comportam como uma praga de gafanhotos. Empresas que sempre deram lucro e que poderiam continuar a dar muito lucro durante muito tempo, são destruídas num par de anos pela ganância de um bónus chorudo. Eis a consequência do falhanço dos valores.
    Esta gestão predadora das empresas, com as consequências nefastas que conhecemos, só é possível por duas razões. Em primeiro lugar, os managers, por meio de mecanismos de auto legitimação têm vindo, a pretexto da crescente complexidade da gestão, a alterar os estatutos e a relação entre administração e accionistas, de modo a blindar os seus poderes e impedir um escrutínio apurado da sua actividade por parte destes últimos. Para os managers, os accionistas só servem para colocar o capital, não precisam nem têm que se imiscuir na gestão da empresa. Podem e devem confiar nos managers, pois estes estão na administração para dar aos accionistas aquilo por que eles anseiam: os lucros. Em segundo lugar, a própria posição dos accionistas, ao contrário do que sucedia antigamente, é efémera. As grandes empresas mudam constantemente de mãos, as posições de capital detidas pelos herdeiros dos fundadores é, na maior parte dos casos residual ou até, não existente, e a maior parte do capital está dispersa por uma multidão de pequenos accionistas que não estão interessados no valor da empresa, mas sim no valor das acções que detêm. Assim que puderem realizar uma mais valia com a venda das acções, não hesitarão em fazê-lo. As empresas perderam os seus valores, o seu quadro de referências, o seu posicionamento na comunidade. Tudo se resume ao lucro, mas não a um lucro qualquer, ao lucro de curto prazo. E como não há valores, não há limites. Tudo serve para alcançar o lucro.    
    Esta crise de valores na empresa estende-se também à crise de valores na comunidade. Não são só as empresas que perderam os seus valores; os países e os povos também. A aculturação global, formatada pela comunicação social e pelos conteúdos de informação e entertenimento levam à perda de valores diferenciadores das diferentes comunidades, países e povos.
    Sem pretender, de modo algum, abraçar as teorias “new age” da idade do Aquário, ou derivar este discurso para a zona difusa das filosofias “zen”, a verdade é que, enquanto comunidade global, perdemos o nosso contacto com a Terra e com a natureza, perdemos a noção de tempo (só conta o hoje e o agora, o amanhã não interessa), perdemos as nossas identidades específicas, encaramos com desconfiança os nossos vizinhos, estamos sempre dispostos a identificar o perigo, mas nunca a oportunidade, em suma, continuamos, apesar de termos hoje uma maior consciência, a praticar os mesmos erros que as gerações que nos precederam sem que aparentemente tenhamos aprendido com eles. Para quem tiver dúvidas sobre esta problemática, basta ver o que acontece cada vez que a comunidade internacional se reúne em conferências internacionais sobre as alterações climáticas como Kyoto ou Copenhaga. Cada país ou região dedica-se empenhadamente a defender egoísticamente os seus interesses mesquinhos e de curto prazo, sem visão de conjunto, sem estratégia, sem liderança. As nossas indústrias continuam a poluir, a produzir bens não necessários, a empolar custos exorbitantes em bens de absoluta necessidade (os cuidados de saúde) ao passo que adiam sistematicamente os investimentos em tecnologias não poluentes ou acessíveis a um conjunto vasto de países e povos. Porém, o problema não reside, como aconteceu no passado, na falta de informação, nem de meios tecnológicos ou de recursos; nunca a sociedade foi tão informada, tão conhecedora e tão plena de recursos como a contemporânea. Mas, porque faltam direcções, não sabemos para onde e por onde ir. O momento é de encruzilhada. E podemos tomar boas ou más decisões.

domingo, 19 de maio de 2013

Capítulo 3 (início)

Prossigo com a publicação do panfleto de Camilo Castelo Negro.
Depois do capítulo 1 em que desmonta as mentiras em que se fundou a actual maioria para alcançar o poder e o capítulo 2 em que faz a síntese e crítica das falsas soluções propostas para sair da crise, o capítulo 3 versa sobre a análise das crises da democracia e do capitalismo.

Primeira parte do capítulo 3.


CAPÍTULO 3
A CULPA DA CRISE: CRISE DA DEMOCRACIA E CRISE DO CAPITALISMO.

    Logo em 2008, muitos pensadores, mormente os liberais (no sentido americano do termo) ou progressistas (no sentido europeu do termo) vaticinaram a crise da democracia e a crise do capitalismo como as causas próximas e directas do “meltdown”.

    CRISE DA DEMOCRACIA

    A democracia estaria em crise porque o sistema representativo está esgotado, os políticos perpetuam-se no poder, as políticas, muito embora com mudança de políticos, são indistintas, os partidos estão cristalizados e não ouvem a sociedade civil. Esta, por seu turno, não se revê  nos actuais partidos e procura organizar-se em “movimentos” e “plataformas” alternativas que respondam aos seus anseios.
    Façamos, desde logo, um ponto de ordem: Um sistema político só está ameaçado se outro sistema se aprestar a substituí-lo. Ora, a democracia não é um sistema imposto, mas escolhido, e tem a humildade de se assumir como imperfeito, fragmentário, incompleto, susceptível de ser sempre melhorado. É, com toda a propriedade, “o pior sistema, à excepção de todos os outros” ( W. Churchill). Assim, a democracia está, por defeito, sempre em crise, porquanto está sempre em aperfeiçoamento, mas não está em crise, no sentido em que a sua existência não está ameaçada pelo advento de outro sistema de organização política.
    Dito isto, entendemos que há, não uma crise da democracia, mas uma crise dos valores da democracia, isto é, há uma crise axiológica da democracia. Expliquemos.
    No nosso sistema constitucional, existem três órgãos de soberania (na verdade são quatro, como os três mosqueteiros, mas o quarto é o poder judicial, de que trataremos adiante), dos quais apenas um decorre da escolha directa dos eleitores, o Presidente da República. Com efeito, os portugueses votam e “escolhem” os deputados à Assembleia da República, e ao fazê-lo, “escolhem” o governo, mas ambos os órgãos resultam de escolhas prévias, indirectas e , por definição, não democráticas, visto que não resultam da escolha da maioria.
    A AR é composta por 230 deputados. Estes são escolhidos em eleições. Mas, em quem votam os eleitores quando votam nestas eleições? O país está dividido em 22 círculos eleitorais, e para cada um deles, os diferentes partidos apresentam listas com nomes de deputados. Ao votar num determinado partido, o eleitor está a votar numa lista. Pelo método proporcional, quanto mais votos receber uma lista, mais deputados a ela pertencente figurarão na AR, por ordem descendente. Se, no limite, uma lista recebesse todos os votos expressos, todos os candidatos a deputados inseridos nessa lista seriam eleitos. Como isso não acontece, o número de votos válidos é dividido pelo número de deputados atribuídos ao círculo, encontrando-se, deste modo, uma média de votos por deputado. Os partidos que alcançarem mais vezes esse número de votos elegerão o maior número de deputados. Assim, os eleitores não votam em deputados, votam em listas de deputados. Nenhum eleitor pode, com propriedade, dizer que votou no “seu” deputado.
    E como é que os nomes dos candidatos a deputados vão parar à lista? Bem, aqui é que os procedimentos começam a ficar menos democráticos. Em certos partidos, as estruturas locais elaboram a lista para o círculo. Noutros, uma “comissão”, ou seja, um grupo restrito de indivíduos, elabora as listas, e casos há em que existe uma “quota” reservada ao chefe do partido, que pode colocar na lista quem lhe aprouver. Em todo o caso, a elaboração das listas é tudo menos democrática, uma vez que um número muito reduzido de pessoas (os militantes do partido, os dirigentes do partido ou o chefe do partido) faz essa lista, afunilando a escolha dos deputados. Aos eleitores, resta votar numa lista fechada e previamente cozinhada que lhes é apresentada e de cuja elaboração estiveram ausentes.
    Porém, “ninguém” elege deputados. As eleições legislativas são disputadas com vista à formação do Governo. Na verdade, a AR, que tem por missão essencial escrutinar a actividade do governo, serve apenas de meio à “eleição” do governo. É certo que, do ponto de vista constitucional, o governo não é eleito; O PR nomeia uma pessoa, que designa para primeiro(a) ministro(a), e essa pessoa forma um elenco governamental que aprova um programa de governo. Esse programa é submetido à apreciação da AR. No limite, a formação do governo depende da vontade do PR e da anuência da AR. Mas, o PR nomeia a pessoa em causa para formar governo, ouvidos os partidos políticos e tendo em conta os resultados eleitorais. Quais? Os da eleição da AR, isto é, o PR nomeia o PM tendo em conta, ou seja, na ressaca, ou antes, decorrente da leitura política do desfecho eleitoral das eleições legislativas. E assim, regra geral, a pessoa nomeada é o chefe do partido que obteve mais deputados eleitos. A campanha eleitoral consiste, não na apresentação de propostas e programas legislativos por parte dos candidatos a deputados (era isso o que seria de esperar de eleições legislativas que têm por finalidade eleger um órgão de soberania legislativo), mas sim na apresentação de propostas e programas governativos por parte dos chefes dos partidos. De ordinário, as campanhas eleitorais são fortemente personalizadas e fazem-se em torno dos chefes dos partidos. Eventualmente, os eleitores escolhem, entre os diferentes chefes dos partidos, aquele que entendem ser o melhor ou o mais capaz para ser primeiro ministro. Nenhum eleitor, na hora do voto, se lembra que está a escolher uma entre várias listas de candidatos a deputados; está, isso sim, a votar contra ou a favor o actual governo (se o primeiro ministro se “recandidata”), ou a escolher entre os dois chefes dos dois maiores partidos, os únicos, afinal, que podem almejar a nomeação pelo PR. Podem ainda estar a votar, votando noutros partidos que não os dois maiores, em partidos mais pequenos, pretendendo com isso impedir que um só partido obtenha a maioria absoluta de metade mais um dos deputados (116) e assim, forçar um governo de coligação ou minoritário. A eleição à AR está assim, travestida de referendo ao governo ou de plebiscito aos chefes dos partidos dominantes. Um partido pode apresentar como candidatos a deputados o escol da inteligência e competência nacionais. Mas, se o chefe do partido for um néscio, se perder os debates televisivos, se for motivo de chacota na comunicação social por “gaffes” ou qualquer outra razão, esses excelentíssimos candidatos não serão eleitos. Se, pelo contrário, um outro partido apresentar uma trupe fandanga de candidatos, mas o chefe do partido for carismático e bem falante, o partido recolherá a maioria dos votos e os incompetentes candidatos serão eleitos.
   
    ALTERNATIVAS PROPOSTAS PELA SOCIEDADE CIVIL

    Desgostosos com a actual partidocracia, alguns movimentos e plataformas oriundos da sociedade civil têm vindo a lume com propostas concretas, com vista ao aperfeiçoamento da democracia. Alguns partidos, designadamente da direita acabam por abraçar uma ou outra destas propostas, motivados por mero calculismo eleitoral.

    Criação de círculos uninominais.

    Esta proposta visa “aproximar os eleitos dos eleitores”, ao fazer com que os eleitores se identifiquem com o “seu” deputado. O método de eleição deixa de ser proporcional para passar a ser maioritário, ou seja, o vencedor do círculo (o partido com o maior número de votos) ganha o lugar de deputado. Efectivamente, em países como os Estados Unidos ou o Reino Unido, os círculos eleitorais elegem um único deputado. Porém, tratam-se de sistemas em que a estrutura partidária é constituída por apenas dois partidos; no caso americano, os Republicanos e os Democratas, no caso inglês, os Conservadores e os Trabalhistas. Num sistema multipartidário como o nosso, com cinco partidos representados na AR, os círculos desta natureza seriam altamente prejudiciais à democracia. Senão, vejamos o exemplo em que um partido obtém 21%, três partidos, 20% cada um, e o quinto partido com 19%. Apenas seria eleito o deputado com 21% dos votos. Para 79% dos eleitores, aquele não seria o “seu” deputado.

    Diminuição do número de deputados.

    Esta proposta tem por base a assunção rasteira e ignorante de que os deputados não trabalham e vão para o plenário ler o jornal e insultarem-se uns aos outros. Quanto menos deputados houver a viver à custa do orçamento, melhor. Esta posição torpe ignora que, quando os deputados não estão no plenário, então sim, é que estão a “trabalhar”, seja nas comissões, seja a preparar as propostas de lei ou a apreciar tecnicamente as ratificações, a elaborar ou emendar propostas resultantes de discussões anteriores, a estudar petições, a ouvir os parceiros sociais, etc.
    Quanto aos custos, os salários dos deputados são apenas uma parte, e não a maior, do orçamento da AR. Se o número de deputados diminuísse, nem por isso diminuiria o orçamento da AR. Ademais, a nossa ratio de deputados por 100 mil votantes está ou em linha ou abaixo da linha com a média europeia. Pretender que temos deputados a mais é redondamente falso e o número, maior ou menor, de deputados, não tem reflexo na qualidade da democracia, mas pode ter na representatividade. O círculo de Lisboa elege 48 deputados, ao passo que o círculo de Portalegre elege 2. Estarão, por ventura, os eleitores de Portalegre mais bem representados do que os de Lisboa, por terem menos deputados?
    Finalmente, e atendendo a que sempre teria que ser respeitada a proporcionalidade dos mandatos face aos votos, uma diminuição no número de deputados resultaria num maior número de votos necessários para os eleger. Assim, essa redução faria sentir-se nos círculos mais pequenos e não nos maiores, havendo uma ainda maior assimetria na representação. Já hoje, oito círculos, de Braga a Setúbal, elegem 170 deputados, ao passo que os restantes 60 deputados são eleitos pelos outros 14 círculos. Círculos como os dois da emigração, Portalegre e Évora, elegem 2 deputados; Bragança, Guarda e Beja, 3. O interior seria dizimado pela proporcionalidade e perderia a sua, desde já escassa, representação.

    Criação de listas de “independentes”.

    Este argumento deixa-nos sempre de pé atrás quanto às intenções piedosas dos “independentes”. É certo que os deputados eleitos pelas listas dos partidos devem, em última instância, obediência ao partido, isto é, aos dirigentes e em suma ao chefe do partido. Este, não é apenas o “primeiro entre iguais” que exprime individualmente a voz do colectivo, mas sim o chefe que manda, e a quem os outros obedecem. Há sempre algo de caudilho no chefe de um partido e, por conseguinte, algo intrínsecamente não democrático na lógica da liderança VS obediência. Mas, se é certo que os deputados obedecem ao partido, não é menos certo que os partidos possuem, cada um deles, a sua tábua de valores e princípios e um enquadramento ideológico que os faz situarem-se no espectro político relativamente aos demais. E estes valores e este posicionamento também são importantes para a democracia.
    E o que vem a ser um deputado “independente”? Independente de quê? E de quem? Sem a referência ideológica e axiológica do partido, que podem esperar os eleitores de um independente? Ser a favor da austeridade às 2ªas, 4ªas e 6ªas, e contra às 3ªs, 5ªs e sábados? A favor do aborto nas semanas pares e contra nas ímpares? Apoia o governo no verão e opõe-se-lhe no inverno? Negoceia contrapartidas para o seu círculo, disso fazendo depender a aprovação de tratados internacionais, leis quadro, códigos legislativos, orçamentos de estado ou moções de censura? 230 deputados do queijo? Como seria o ritmo da governação com uma câmara em permanente chantagem com o governo, sacando-lhe toda a sorte de contrapartidas a troco do voto? A criação de listas de independentes insere-se na lógica do “partido que é contra os partidos” e do “político que é contra os políticos”. Enfim, trata-se apenas de, a coberto do manto da independência, ultrapassar os partidos pela berma (escusamo-nos a usar a expressão mais corrente ”pela direita”, para não confundir a estrada com as ideologias).

   

domingo, 12 de maio de 2013

Capítulo 2 do panfleto

A pedido de Camilo Castelo Negro, publico o capítulo 2 do seu panfleto.


CAPÍTULO 2
A RECESSÃO: E AGORA?
         
A DIREITA

    A direita fornece como solução para a situação actual, duas receitas que advêm dos seguintes pressupostos:

Primeiro: Sem disciplina das contas públicas, isto é, dívida soberana e défice abaixo de certos valores tidos por aceitáveis, não é possível ter a economia a crescer.

Segundo: Sem aumento da competitividade, não é possível termos uma economia capaz de enfrentar os mercados e os novos desafios globais, desde logo os mercados emergentes e a globalização.

    Partindo destes pressupostos, as receitas avançadas pela direita são as seguintes:
Para o primeiro problema, devem ser encetadas e prosseguidas políticas restritivas do investimento público e do consumo privado, de modo a melhorar a balança de pagamentos e a diminuir o défice. Menos gastos resultam em um saldo menor das contas públicas e, por conseguinte, um défice menor; menos investimento significa menos endividamento e menos consumo significa menos importações, logo, menos dívida soberana.
Crítica: Se é verdade que, em tese, estes postulados estão certos, não é menos verdade que os meios utilizados (menos investimento, menos consumo, diminuição do poder de compra, seja pelo aumento de impostos, seja pelo corte de salários, subsídios, pensões e prestações sociais) contêm em si efeitos perversos que contrariam o efeito desejado, isto é, resultam na diminuição do tecido empresarial e, por conseguinte produtivo, o que leva a uma diminuição da receita fiscal (menos activos e menos empresas a pagar impostos) e aumento da despesa social (mais desempregados e dependentes). O resultado é aquilo a que se chama a “espiral recessiva”: Mais cortes conduzem a mais défice e mais endividamento, o que por sua vez tem que ser corrigido com mais cortes, os quais vão provocar mais défice e endividamento, e assim por diante. A meia verdade da direita é também uma meia mentira.
    Para o segundo problema, a direita encara a actual crise como uma “oportunidade” para moldar a economia à sua ideologia. A uma economia de serviços com um tecido empresarial constituído por micro empresas oriundas de empresários pertencentes à chamada “classe média”, deve dar lugar uma economia com menos mas melhores empresas (Já Estaline dizia que no tempo dele a Rússia ficaria com “menos mas melhores russos”), geridas de forma eficiente e profissional (pelos administradores pertencentes à “elite” e formados nas Universidades da “elite”), vocacionadas para a exportação, o novo el dorado e panaceia para todos os males, tendo em conta os mercados globais, mormente os emergentes. Para isso, é necessário conseguir “ganhos de produtividade” e “flexibilização” da gestão. É também necessário que o Estado desista de investir, de modo a que os capitais existentes fiquem disponíveis para o investimento privado em vez de serem desperdiçados em investimentos públicos.
Crítica: É certo que nas últimas décadas, mercê da adesão à CEE/UE, o nosso tecido produtivo sofreu uma assinalável transformação, de base rural e indústria pesada concentrada num pequeno número de grandes empresas, para uma economia atomizada e de serviços. O modelo de crescimento não foi o melhor, mas o anterior modelo também era insustentável, pois só subsistiu enquanto dispôs de mão de obra abundante, indiferenciada e muito barata, bem como matérias primas baratas provenientes das colónias africanas. O fim do ciclo colonial, o fluxo de imigração proveniente de África e o anseio de mobilidade sócio-económica decorrente da liberdade e da democracia motivou o fim desse modelo e a adopção de um novo que, à data, era tido como o melhor para o nosso país.
    O que a direita define como “ganhos de produtividade” e “flexibilização” não é mais senão a pretensão de voltar a dispor de mão de obra barata (agora qualificada, graças ao enorme salto qualitativo da escola pública) e descartável. Com efeito, a produtividade resume-se a uma equação: O valor dos bens ou serviços produzidos a dividir pelo custo da sua produção. Se o custo baixar mais que o valor, ainda que o valor do produto seja também baixo, a produtividade aumenta. Porém, as economias competitivas estão focadas no valor e não no custo. Se, por exemplo, um operário do calçado português que produz sapatos que se vendem a 150€ trocar o seu posto de trabalho com um operário do calçado inglês (ambos com a mesma experiência, qualificações e competências) que produz sapatos que se vendem a 450€, o operário português, só pelo mero facto de viajar até Inglaterra será três vezes mais produtivo, ao passo que o inglês o será três vezes menos. Quando ambos regressarem aos respectivos países de origem, será invertida a produtividade. Isto demonstra que a produtividade está no valor do bem ou serviço produzido e não no custo para o produzir. As economias mais competitivas do mundo (Suíça, Suécia, Alemanha, etc) são as que têm mais custos, designadamente laborais, mas também, e sobretudo, as que produzem com mais valor; Por mais baixo que seja o salário de um operário chinês relativamente a um suíço, um relógio suíço será sempre mais caro, isto é, de maior valor, do que um relógio chinês, e por isso, a fábrica suíça será sempre mais produtiva que a chinesa: nisto consiste a competitividade; quanto maior for o valor em relação ao custo, maior será a competitividade. Uma economia empobrecida, sobrevivente apenas porque tem baixos custos, é inviável no futuro. Alguém, algures, conseguirá ter um custo mais baixo.

A ESQUERDA

    A Esquerda, essencialmente, a esquerda comprometida com o programa de ajustamento, também apresenta soluções, muito embora diferenciadas, para resolver a actual crise. E são duas, as soluções propostas:

    A primeira: Se é certo que sem disciplina nas contas públicas não há crescimento, sem crescimento também não é possível haver disciplina orçamental porque faltam as receitas. Assim, há que colocar a tónica no crescimento e não na austeridade.

    A segunda: O desemprego é uma “chaga social” que mina a sociedade, e consequência dos efeitos perversos da austeridade. Devem, pois, ser tomadas medidas de estímulo ao emprego, de modo a diminuir a despesa com prestações sociais de apoio aos desempregados e aumentar a receita fiscal, consequência do acréscimo de rendimento das famílias e das empresas.

    Crítica: Tal como a direita diz uma meia verdade, a esquerda também o faz, ao dizer que sem crescimento não há disciplina das contas públicas. Porém, sem uma abordagem diferente, não é possível sair deste dilema: Austeridade hoje para ter crescimento amanhã ou crescimento hoje para ter contas públicas saudáveis amanhã?

    O que é o crescimento?

    A economia – e a política - dos nossos dias vive obcecada com o crescimento. Com efeito, plantámos um “chip” no nosso cérebro ao qual associámos um binómio “prazer/dor”: Se a nossa economia cresce, estamos felizes (prazer), se não cresce, estamos deprimidos (dor). Esta obsessão pelo crescimento radica na crença, aliás algo infantil, de possibilidade de um crescimento perpétuo, infinito. Se a cada ano, crescermos mais do que no ano anterior, seremos felizes e todos os problemas do mundo serão resolvidos. O crescimento é a chave do desenvolvimento, da qualidade de vida, dos padrões civilizacionais elevados. Desmontemos esta crença com o exemplo, por um lado, de países como o Brasil, a Índia e a China e, por outro, do Japão e da Itália.
    O crescimento do PIB no Brasil, nos últimos anos, tem rondado os 4 a 5% anuais. Porém, e como todos nós sabemos, não é só o crescimento que é elevado no Brasil; a iniquidade na distribuição do rendimento também. Por isso, logo por debaixo de uma fina camada de samba, futebol, alegria e Carnaval, a sociedade brasileira trava uma amarga e interminável guerra civil. A taxa de homicídios é das mais elevadas do mundo e, de longe, a mais elevada do mundo num país daquelas dimensões. Todos os anos são assassinadas no Brasil mais de 40.000 pessoas. O crescimento, por si só, sem ser equitativamente distribuído, não gera igualdade de oportunidades, nem justiça, nem paz.
    Na Índia, as taxas de crescimento são ainda maiores e rondam, em média, nos últimos anos, valores superiores a 7%. Porém, nem só a riqueza cresceu naquele país; a pobreza também. A Índia tem hoje, 60 anos após a sua independência, o dobro dos pobres que tinha então: mais de 800 milhões. A Índia pode ter vários milionários na lista da “Forbes”, exportar médicos e informáticos para todo o mundo e é uma potência nuclear com aspirações a membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas os indianos morrem de doenças infecciosas como a lepra e a peste bubónica, doenças que só conhecemos pelos livros de História, e o bem nacional mais precioso é o saneamento básico: 80% da população rural e 20% da população urbana não tem saneamento básico. Calcula-se que sejam cerca de 300 mil, as toneladas diárias de dejectos humanos largados nos rios, lagos, praias, campos de cultivo, orlas das florestas e, sim, em plena via pública, por milhões de pessoas que, muito embora vivam num país que cresce mais de 7% ao ano, é incapaz de prover às necessidades mais básicas do ser humano. O crescimento, por si só, não resolve o atraso no desenvolvimento.
    Por último, mas não em último, a China, a campeã mundial do crescimento económico, com taxas que rondam os 10%. Não é só o crescimento chinês que impressiona; a feroz tirania do seu regime, o desprezo aviltante pelo meio ambiente, a tortura, as prisões arbitrárias, a farsa grotesca do seu sistema de “justiça”, que mais não é que uma gigantesca indústria de execuções, a corrupção que corrói até aos ossos toda a sociedade chinesa, onde nada se faz sem ser a troco de um suborno, também impressionam. Quanto ao seu modelo económico, a China escolheu a produção em massa de quinquilharias contrafeitas e extremamente baratas, mas de baixíssima qualidade, só possíveis de produzir graças, por um lado, à abundante mão de obra trazida do interior para as cidades costeiras pelas máfias ligadas às organizações locais do partido único, mão de obra essa sem qualquer espécie de protecção social, num estádio de desenvolvimento semelhante à primeira fase da revolução industrial, há 200 anos atrás, a que acrescem os milhões de trabalhadores prisioneiros, escravos e crianças ( ONG’s credíveis avançam com um número estarrecedor: pelo menos 80 milhões de crianças trabalham na indústria, pense nisto da próxima vez que entrar numa loja chinesa) e, por outro, ao desprezo por todas as regras ambientais (a poluição é o preço a pagar pelo progresso) e de ética empresarial (roubo descarado de patentes e contrafacção, pirataria informática, etc.). E o que faz a China com todo o dinheiro dos excedentes da sua balança comercial? Investe no seu mercado interno? Melhora as condições de vida dos seus povos? Desenvolve sustentadamente o país? Procura mudar o seu modelo económico com vista a uma economia mais ética e mais viável? Não. Compra dívida externa e entra no capital de empresas estrangeiras, numa lógica própria da corrupção, pensando que, “comprando” deste modo os estrangeiros, estes serão obrigados a fazer negócios com a China e irão abster-se de criticar o regime.
    Já o Japão apresenta uma realidade muito diferente. Nos últimos vinte anos, a economia japonesa cresceu a um despontante ritmo de menos de 1% ao ano, e a dívida pública japonesa está acima dos 200% do PIB (actualmente, a dívida pública portuguesa está nos 122%). Situação semelhante vive a Itália, com estagnação do crescimento e dívida pública elevada, acima dos 100% do PIB. Porém, quer num caso, quer noutro, ambos os países possuem elevadíssimos padrões de qualidade de vida, especialmente no Japão, no que respeita à educação, saúde, prestações sociais, cultura, etc. Paradoxalmente – ou talvez não – o Japão continua a ser um dos países mais competitivos do mundo, e a Itália não fica muito atrás, o que arrasa a crença de que uma economia só é competitiva se crescer muito e estiver a dever pouco, sem olhar à qualidade da economia e da sociedade, e não à mera quantidade.
Conclusão: O crescimento, por si só, não representa justiça, nem desenvolvimento, nem liberdade, nem paz: Representa apenas, dinheiro. E o dinheiro não possui qualidades morais, será de bom ou mau uso, consoante o uso que fizermos dele.

O que propõe então a esquerda “comprometida com a troika”?

    Quanto ao crescimento: Propõe “programas de estímulo”, que consistem na construção de infraestruturas (obras públicas) e apoios ao desenvolvimento tecnológico (subsídios a grandes empresas com departamentos de investigação e desenvolvimento), financiados por “Eurobonds”, ou seja, títulos de dívida pública emitida pelo BCE, para apoiar especificamente estes programas. O resultado: O dinheiro vai para grandes grupos económicos, as operações financeiras são tomadas pelos grandes Bancos, os contratos de adjudicação em regime de PPP são geridos pelos grandes escritórios de advogados, e todo este carrossel é enxameado por empresas de comunicação, relações públicas, trabalho temporário, formação, assessoria, auditoria, etc., de que invariavelmente são sócios os ministros, os autarcas, os deputados, os chefes de gabinete e outros membros dos partidos dominantes, bem como as respectivas mulheres, maridos, filhos e filhas, primos e cunhadas, sobrinhos e enteados, apesar de todas estas empresas ganharem concursos públicos impecavelmente limpos e transparentes (tão transparentes que não escondem o óbvio). Estes investimentos, a maior parte dos quais redundantes, resultam em crescimento do PIB, é certo, mas este crescimento aproveita apenas a um número reduzido de pessoas e empresas, justamente aquelas que fazem parte do problema e não da solução. Já vimos este filme. Obrigado, mas não, obrigado.
    Quanto aos estímulos ao emprego, ou “políticas activas de emprego”, estas resumem-se a criar a ilusão de que, durante algum tempo, algumas pessoas têm algum emprego. Na verdade, os estímulos consistem em disponibilizar, por um lado, mão de obra grátis ou quase grátis para “estágios”, onde se cria a ilusão de que, se os estagiários mostrarem muita força de vontade, talvez fiquem (mas nunca ficam, porque depois de uma fornada de carne fresca, vem sempre outra ainda mais fresca), e por outro, “incentivos à contratação” ou seja, a comparticipação pelo contribuinte dos encargos da empresa, seja por isenções ou benefícios fiscais, seja por dispensa total ou parcial de pagamento da TSU, seja até por copagamento do salário. Uma vez terminados estes estímulos, todos voltam à condição inicial. Todos, não. As empresas que beneficiaram de mão de obra qualificada a preço da chuva estão mais ricas. Também já vimos este filme.

    Vimos, pois, que nem a direita nem a esquerda estão em condições de apresentar uma saída credível e exequível para o actual estado de coisas, desde logo, pelo seu comprometimento (diríamos mais, pela sua cumplicidade) com o passado, nem as soluções que apresentam são viáveis, seja por são falsas soluções, meias soluções, ou soluções produtoras de problemas para o futuro. E deste nó górdio em que parece estarmos enredados, não se vislumbra uma saída. Mas, e se pensássemos “fora da caixa”? E se abordássemos os problemas por uma perspectiva diferente?

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Um panfleto




DO ESTADO DAS COISAS

DA VERDADE E DA MENTIRA SOBRE O ESTADO EM QUE ESTAMOS E O QUE FAZER PARA SAIR DO IMPASSE EM QUE VIVEMOS
OU
COMO TORNAR PORTUGAL EM UM DOS MELHORES PAÍSES DO MUNDO PARA SE VIVER


Por:
Camilo Castelo Negro,
Cidadão irritado


ÍNDICE

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 1
UM GOVERNO DE MENTIRA, UMA MENTIRA DE GOVERNO

CAPÍTULO 2
A RECESSÃO: E AGORA?

CAPÍTULO 3
A CULPA DA CRISE: CRISE DA DEMOCRACIA E CRISE DO CAPITALISMO.

CAPÍTULO 4
AS SOLUÇÕES

CAPÍTULO 5
AS OMELETES E OS OVOS

CAPÍTULO 6
REFORMA DO ESTADO

CAPÍTULO 7
DA EUROPA

    ADVERTÊNCIA

    Resolvi escrever este papel porque, no meu íntimo, estava a ser insuportável guardar apenas para mim as preocupações acerca do grave momento que o nosso país vive, bem como as reflexões que tenho vindo a fazer sobre os problemas e as soluções para sairmos do imbróglio em que estamos metidos. Recuso-me, também a não ter esperança; o que distingue o ser humano dos outros animais é, entre outras, a capacidade de perspectivar o futuro. E o futuro não é, não pode ser, o negro e o vazio que as cabeças falantes teimam em nos propor.
    Cercado de tantas mentiras e inculcações, espanto-me com o facto de, apesar de vivermos numa época farta em informação, paradoxalmente, ser tão escasso o conhecimento e tão fácil vender mentiras ao preço de verdades. Indigna-me, também, que tantos sejam tão lúcidos a esmiuçar os problemas, mas tão poucos os que avançam soluções.
    Este é, pois, o meu modestíssimo e inútil contributo. Não é nem pretende ser um ensaio ou uma tese, posto que dele está ausente toda a cientificidade necessária para tal. Escusado é, portanto, procurar por citações, fontes, quadros ou bibliografia. Procurei, no entanto ser sempre fiel à verdade e não omiti ou distorci nenhum facto ou realidade.
Barreiro, Páscoa de 2013 




    INTRODUÇÃO

    Muitos de nós, portugueses, olhamos para o futuro com apreensão e, pela primeira vez na vida, sem vislumbrar qualquer horizonte. A uma hora sombria, segue-se outra, e outra e outra. Contra toda a lógica e as lições da História, sentimo-nos metidos num poço sem fundo, num túnel sem saída, numa noite escura à qual nunca há-de suceder a madrugada, num inverno perpétuo sem sinal de despontar a primavera.
    Há, pois, que fazer uma reflexão e perguntar-mo-nos de onde viémos e onde estamos. As respostas a estas perguntas fornecerão as respostas às perguntas que queremos ver respondidas: Para onde vamos e qual é o caminho.



CAPÍTULO 1
UM GOVERNO DE MENTIRA, UMA MENTIRA DE GOVERNO

    Começemos, então, pelo exacto ponto em que nos encontramos: Um governo sequestrado pelo seu próprio povo, que não consegue sair à rua sem escolta, um governo que vive num país imaginário que está a “ajustar”, feito de números, ratios, tabelas, percentagens e equações e não de pessoas de carne o osso, e um povo que grita para um governo que não o quer escutar. Mas este governo não chegou ao poder por meio de um golpe palaciano; ganhou as eleições. Como pôde isto acontecer?

    As mentiras

    O actual governo alcançou o poder cavalgando em quatro mentiras.

    Primeira mentira: A culpa de todos os males do mundo, desde que Adão mordeu o fruto proibido até agora, é do odioso governo que nos precedeu e do seu demoníaco primeiro ministro.

    Esta mentira baseia-se, não no julgamento político do anterior governo, mas no simples facto de ter sido esse o governo que precedeu o actual. Fossem outros os protagonistas, e outros seriam os culpados. Esta mentira é fácil de vender, na medida em que personifica o mal e a culpa numa pessoa e grupo de pessoas facilmente odiável e dificilmente defensável e canaliza de modo simplório toda a frustração e raiva para um só ponto de confluência. Lembram-se do Iraque?
    Esta tese alarga-se logo depois a “todos os governos”, a “todos os políticos”, a “todos os partidos”, aos “últimos 38 anos”, para chegar, enfim, ao seu destino: O 25 de Abril, a democracia, a liberdade, o estado de direito democrático. A conclusão que esta mentira visa alcançar é de um revanchismo e cabotinismo absolutos e expressa bem os insondáveis objectivos da actual liderança pseudo-liberal que nos (des)governa. No tempo da ditadura é que era bom; cada um sabia qual era o seu lugar, ninguém esperava alcançar fosse o que fosse da vida porque quem nascia rico, morreria rico e quem nascesse pobre, haveria de morrer pobre (mas honrado e limpinho) e quem superiormente nos governava, fazia o sacrifício de nos governar, contra a nossa vontade, é certo, mas no nosso interesse (sem que o soubéssemos), qual o bom pai de família que castiga o filho rebelde, quando necessário, para seu próprio bem. Por isso, nem a democracia nem a liberdade faziam falta e, pelo contrário, eram perigosas e subversivas, e o melhor era quem ninguém se “metesse em política”.
    O propósito desta mentira é fazer “terra queimada” do passado democrático e iniciar uma “nova era” de governação que rompe com o passado desastroso e refunda o país, à imagem do “Estado novo”, o qual era novo, justamente porque rompeu com a República e a democracia republicana.  Com efeito, para a “elite” iluminada que ocupa agora o poder, é necessário passar uma esponja na democracia e na liberdade e em todos os direitos, liberdades e garantias alcançadas e no facto indesmentível de termos, no período de uma geração,  passado de uma sociedade arcaica, pobre, parola e provinciana para uma sociedade moderna, aberta, complexa e, sim, rica, muito embora com grande iniquidade na distribuição dessa riqueza.

    Segunda mentira: A crise internacional não existe, apenas o mau governo que nos precedeu é responsável pelos males que nos afectam.

    Esta mentira entronca na anterior e visa ocultar a realidade global a que o nosso país está exposto, de modo a servir uma explicação simplista do que é um quadro complexo: Por um lado, somos uma democracia que se insere plenamente na comunidade internacional;  integramos o maior bloco económico do mundo, a União Europeia e, no seu seio, o Euro; o nosso mercado é aberto e está, por conseguinte, exposto às oscilações dos mercados mundiais. Por outro, vivemos numa economia globalizada em que a Europa, mercê da sua fraqueza política, não desempenha um papel à altura da sua importância económica, assistimos à emergência de países como a China, a Índia, o Brasil e outras economias do sul e do oriente, ao passo que o Japão ou os Estados Unidos, para já não falar na Europa, definham e perdem relevância. Finalmente, a dissolução dos blocos político-militares dissolveu também o “status quo” dos equilíbrios globais. Dantes, sabíamos quem eram os “nossos” e quem eram os “deles” e sabíamos o que esperar de uns e de outros, com todas as perversidades que esse equilíbrio acarretava: Hoje, exércitos multinacionais combatem sem bandeira nem declaração de guerra(Al Quaeda) e os verdadeiros detentores do poder económico são organizações internacionais sem legitimidade nem responsabilização democráticas (FMI, BCE, Banco Mundial, Organização do Comércio Livre e outras) ou empresas privadas de dimensão e influência globais (com o Banco Goldman Sachs à cabeça como exemplo elucidativo), sendo certo que entre estas organizações e empresas há uma grotesca “dança das cadeiras” a que gostam de brincar os seus administradores, ocupando cargos ora numas, ora noutras. Há, pois, que esconder esta realidade e oferecer explicações simplistas e simplórias para conformar o povo.

    Terceira mentira: O país está em estado de necessidade porque o anterior governo era gastador e fazia investimentos delirantes.

    O remédio é óbvio: Basta fazer uma governação serena, ponderada, parcimoniosa e prudente, e tudo voltará a entrar nos eixos. Bastará cortar nas “gorduras do Estado”, e as contas públicas serão metidas na ordem. Assim, há que eleger um conjunto de idiotas úteis e indfensaveis a quem se possam atribuir as gorduras e o despesismo que eram apanágio do anterior governo: PPP´s (infraestruturas viárias e de saúde, não são igrejas barrocas ou baixelas de prata, não obstante toda a crítica legítima que se possa fazer à sua gestão), fundações (a maior parte das quais não recebe um cêntimo do Estado, e as que recebem, têm estatuto de utilidade pública, isto é, a sua missão substitui-se à do Estado), “gastos com políticos” (escondendo que o conjunto do orçamento de despesas do Governo (60 M€) AR (110 M€) e PR (15M€) não chega a 0.4% da despesa pública do Orçamento de Estado(52.000M€), etc.
    Porque estes bodes expiatórios não são suficientes, arranjam-se ainda outros e, com a colaboração voluntária ou inconsciente de certa comunicação social rastejante,  faz-se apelo aos sentimentos mais baixos (que também os temos) e desportos nacionais favoritos dos portugueses: A inveja e a perfídia. Olhando para cima, lança-se o anátema sobre os salários “obscenos” e as pensões “de luxo”, sendo certo que basta que alguém ganhe um euro a mais do que nós para cair nestas classificações, esquecendo-se o trabalho “obsceno” e os descontos “de luxo” que  essas pessoas tiveram e fizeram para alcançar esses salários e pensões. Olhando para baixo, há sempre alguém inferior a nós na cadeia alimentar e a quem podemos espezinhar no ciclo de frustração e expiação em que vivemos, pelo que devem ser cortados os subsídios e prestações sociais à ralé, isto é, aos pretos, ciganos, desempregados (mandriões que não querem aceitar empregos e nem sequer os procuram), imigrantes e outros meliantes. Faltam nesta lista os judeus, mas esses já foram queimados na fogueira pelos nossos egrégios avós.

    Quarta mentira: Não há alternativa.

    Esta mentira decorre das anteriores e parte de um pressuposto óbvio: Durante anos, isto é, desde o 25 de Abril, andámos a viver acima das nossas possibilidades e a gastar o que não tínhamos. Agora, temos que mudar de vida. A culpa da ilusão em que vivemos é, pois, e uma vez mais, da democracia, da liberdade, em suma, da quimera de pretender uma vida melhor e um país mais justo e mais moderno. Pura ilusão. Deveremos retornar à pobreza ascética, à humildade virtuosa e viver alegremente com o pouco que temos, bendizendo a nossa situação que, não sendo boa, é bem melhor que a de outros, ainda mais pobrezinhos que nós, esquecidos de Deus, dando graças ao governo, qual Salazar que nos salvou da guerra, ainda que não nos tenha podido salvar da fome.
    São três, os objectivos desta mentira. Em primeiro lugar, apresentar, mais uma vez com uma explicação simplória, a crise e a sua perpetuação como um facto consumado e inevitável, evitando deste modo a discussão séria e consequente sobre a sua origem e os seus protagonistas. Em segundo, esvaziar as alternativas às actuais políticas de austeridade e recessão que visam, em última análise, a destruição da economia e da sociedade tal como a conhecemos, de modo a abrir caminho à “refundação” do novo “Estado Novo”. Em terceiro, aproveitar a crise para destruir o Estado de Direito democrático e social, tal como o conhecemos, e substití-lo por um Estado mínimo, em que, a coberto da “liberdade de escolha” e da “iniciativa privada”, por um lado, e da falta de recursos, por outro (não há dinheiro, não se faz, não há, paciência)se esvazia o Estado Social reduzindo-o a uma função assistencial (o estado caridoso, o estado que ajuda os “pobrezinhos”, com uma diminuição drástica nos gastos públicos) e se descarta a capacidade interventiva do Estado, seja porque não há capital disponível para realizar investimentos públicos (o dinheiro deve estar à disposição da “iniciativa privada”, porque só os privados têm “vocação” para investir) seja porque todo o tecido empresarial público é privatizado (mais uma vez, o estado, ao contrário dos privados, não tem “vocação” para gerir empresas e prestar serviços). Porém, logo os privados constatam que os serviços públicos, uma vez na mão deles, afinal não dão o lucro que se esperaria (onde estão os administradores inteligentes?) e se o Estado quer que estes serviços sejam prestados (transportes, educação, saúde, assistência social, etc.) terá que pagar, e bem caro, aos privados para que estes façam o favor de prestá-los. Não há dinheiro para o Estado desempenhar as funções que lhe estão constitucionalmente atribuídas, mas depois o dinheiro aparece para pagar aos concessionários privados, pois o estado é uma “pessoa de bem” e deve honrar os seus compromissos. Os recursos são, deste modo transferidos da esfera pública para a privada.
    Se o caminho que nos levou à perdição foi “fácil”, a cura para os males do mundo será “difícil”, porém frutuosa. Os portugueses, coitadinhos, queixam-se, e as suas queixinhas até são são legítimas, porque não conseguem, lá de baixo onde estão, vislumbrar o futuro radioso que a “elite”, cá em cima, lhes prepara. Os portugueses não entendem, coitadinhos, que é preciso empobrecer, primeiro, para enriquecer (não todos, só alguns), depois. É preciso varrer a velha economia feita de pequenas empresas e acabar com a detestável “classe média”, constituída por gente pouco recomendável que tem o hábito nefasto de querer “subir na vida”, “pensar” e enviar os filhos para a Universidade (e que ainda por cima têm o topete de passar à frente, em mérito, dos filhos da “elite”) para depois surgir, em geração espontânea, a nova economia, com as suas grandes empresas pertencentes àquelas dez ou doze famílias respeitáveis que todos nós sabemos quem são, administradas pelos membros das “elites”, os tais que estudaram (ou, pelo menos foram matriculados) naquelas duas ou três Universidades (privadas, claro está) que produzem os comentadores papagaios (ou serão moscas?) que quotidianamente nos entram em casa pela televisão e poluem as nossas salas de estar com a repetição ad nausea destas mentiras.