Um fim sem
inferno ou um inferno sem fim?
(sem atribuir qualidades ou defeitos morais aos animais)
Escrevo
estas linhas numa semana histriónica em que o absurdo bateu à porta deste país.
Em qualquer nação
civilizada, a democracia tem regras não escritas que, por serem da mais
elementar evidência, são seguidas por todos. Assim, ninguém confunde o poder
com a autoridade, a investidura formal com a legitimidade democrática, as
condições políticas para o exercício do poder com a aritmética parlamentar.
Ora, temos um governo
de coligação constituída por dois partidos, sendo certo que nenhum deles, por
si só, dispõe de maioria parlamentar. Logo, se o líder de um dos dois partidos
se demite alegando profundas razões de natureza política e não de outra ordem
qualquer (pessoal, familiar, etc.), então, em qualquer país civilizado,
repita-se, o partido cujo líder se demite sai da coligação, esta acaba, a
maioria que apoia o governo extingue-se, o governo cai e o primeiro ministro
apresenta a sua demissão. Isto é o que acontece em qualquer democracia
civilizada.
Não assim em Portugal.
O primeiro ministro, pasme-se, não aceita a demissão do líder do parceiro de
coligação e número dois do governo, apesar dessa demissão ser pública,
irrevogável e por razões políticas, ou seja, por razões que implicam a
dissolução da coligação e consequente queda do governo.
Este facto inédito só
pode ser explicado por duas razões:
Primeira razão: Passos está em completo estado de negação. Não
imagina o que significa ser chefe de um governo europeu. Não tem noção do
decoro que se exige a uma pessoa na sua posição. É um indivíduo completamente
falho de ética, desconhecendo as regras do jogo democrático. Não compreende a
diferença entre a legitimidade formal que advém da vitória nas eleições, legitimação
democrática que se obtém pela aprovação das políticas implementadas pelo
governo ao longo do tempo e que se conquista diariamente, e autoridade
democrática, que se traduz na capacidade de liderança e motivação, na lucidez que
se reconhece à tomada das medidas certas no momento oportuno, na capacidade de
convencimento da justeza das suas posições quer perante apoiantes, quer perante
adversários e na coerência entre o discurso e a prática políticas.
Ora, está bem de ver
que esta razão avançada faz todo o sentido. De facto, o governo teima em não
cair apesar de não ter nenhumas condições políticas para governar. Senão,
vejamos:
O governo divorciou-se
dos portugueses desde, pelo menos, o episódio da TSU. Não escuta ninguém, é
imune à contestação de todos os sectores da economia e da sociedade. Há hoje
uma unanimidade transversal a toda a sociedade na rejeição do governo como
nunca houve no país. Mário Soares, Sá Carneiro, Cavaco Silva, José Sócrates
foram por certo dos mais odiados primeiros ministros. Porém, nunca deixaram de
ter, ao mesmo tempo, apoio entusiástico e significativo. Já Passos não é
defendido por ninguém, porventura nem pela própria mãe. A mera existência do
governo é intolerável para todos, mesmo para aqueles que supostamente o
apoiariam.
O governo gozou, no seu
primeiro ano de mandato, do apoio do maior partido da oposição que até se
absteve na votação para o orçamento de 2012, apesar desse voto ser irrelevante
para a sua aprovação. Também na concertação social obteve um acordo, juntando
associações patronais e a UGT. Hoje, o governo está completamente isolado e
cortou todos os canais de comunicação com a sociedade civil, com os restantes
partidos e com os parceiros sociais, mercê da sua confrangedora incompetência e
do espectacular falhanço das suas políticas.
Por fim, o governo não se
entende sequer no seio da coligação. O primeiro ministro recusa-se obtusamente
a ver a coligação como um entendimento entre dois partidos. Humilhou repetida e
publicamente o líder do CDS, considerando-o até como o “n.º 3” do governo. As
surrealistas reuniões de dez ou mais horas do Conselho de Ministros, bem como o
relato quase em tempo real do que se lá passa atestam bem a falta de liderança
do primeiro ministro e a falta de entendimento político entre os partidos. Como
pode o governo pretender impor medidas ao país quando não consegue sequer gerar
consensos no seu próprio seio? A rematar esta sucessão de episódios, a inédita
recusa de aceitação do pedido de demissão de Portas. Esta atitude avacalha a
dignidade do Estado. Passos governa como estivesse à frente de uma associação
de estudantes. Patético!
Porém, pode haver uma
segunda explicação para que o governo teimosamente não caia: O medo de um
segundo resgate. Este medo, na mente de Passos, é real. Tal representaria um
triplo falhanço: Do governo, fiel executor do programa e que consegue a proeza
de falhar todas as metas sem excepção, tornando inúteis e estúpidos os enormes
sacrifícios feitos pelos portugueses; de Cavaco, que tem o programa da Troika
como uma vaca sagrada e não representa como possível o desvio de um milímetro
que seja, ou não tivesse sido o programa desenhado por académicos economistas,
seus pares e portanto deuses cuja autoridade não se discute; e da própria
Europa e da sua obtusa obstinação na austeridade que concebeu o programa e
sempre elogiou Portugal como um bom aluno, fiel e obediente.
De facto, e observando
objectivamente os dados económicos, o segundo resgate não só é uma evidência
como já só peca por tardio.
Com efeito, em 2011, os
yelds a 10 anos haviam superado a barreira dos 7% e hoje andam pelo mesmo
valor; a dívida soberana havia ultrapassado os 100% do PIB e hoje atingirá os
140% no final do ano; O défice estava acima dos 6% e hoje está acima dos 10%;
havia uma “double dip recession” ou seja, depois de ter entrado em recessão em
2009, o país saiu em 2010 para voltar de novo à recessão em 2011, o que era
considerado uma tragédia. Pois bem, hoje vamos no terceiro ano consecutivo de
recessão e sem fim à vista, o que é notável, se tivermos em conta que o nosso
PIB em dois anos recuou 10 mil milhões de euros para valores de 2005. Finalmente
e para juntar o insulto à injúria, o desemprego que estava nos 11% está agora
em 20%, para já não falar nos números do investimento e do consumo interno.
Dois anos após o chumbo do PEC 4 e da milagrosa “ajuda” que muitos comentadores
louvaram como um “verdadeiro programa de governo, muito bem feito”, os dados
objectivos não mentem. Todos os indicadores gritam por um segundo resgate.
Portugal pura e simplesmente não conseguirá “regressar aos mercados”, nem em
2013, nem em 2014 nem, se tudo continuar na mesma, em 2015. Os números não
mentem e são o que são: Não é possível. O resgate está iminente. Ou não?
Quem foi resgatado em
2011?
Em 2011, segundo um
estudo do Bank of International Settlements, uma organização internacional com
sede na Suíça, a percentagem de dívida portuguesa detida por credores
institucionais europeus, isto é, bancos centrais, bancos comerciais, seguradoras,
fundos de pensões e fundos de segurança social, era cerca de 75%. Em 2013, essa
percentagem já é inferior a 50% e por 2015, será cerca de 25% do total da
dívida pública portuguesa, ou seja, em quatro anos, metade da dívida portuguesa
desaparece dos balanços dos credores institucionais europeus e é transferida
para o FMI e o BCE. Isto significa que o “programa de ajustamento” visava um
objectivo central, muito claro e, a nosso ver, único: Resgatar, não Portugal,
mas os seus credores. O programa da Troika tem como finalidade resgatar os
credores de Portugal, limpar a dívida portuguesa dos seus balanços. Como
funciona este “esquema”? O FMI e o BCE, que têm recursos ilimitados, actuam
como bancos tóxicos e emprestam dinheiro a Portugal para que este pague aos
credores à medida que as obrigações se vencem. Os credores são pagos, livram-se
dos títulos de dívida portuguesa e desaparecem, melhoram os seus balanços e os
seus activos porque já não têm dívida má (a portuguesa, bem como a grega e a
irlandesa) e compram nova dívida, agora dos países do norte da Europa, e
Portugal transfere a sua dívida para estas instituições. Por 2015, a dívida
soberana portuguesa estará nas mãos da banca e da segurança social portuguesas
(os tais 25% que sobram) e Portugal terá três sócios: Um sócio de indústria,
que é o povo português, que trabalhará para pagar a dívida, e dois sócios
capitalistas, dois agiotas chamados FMI e BCE que emprestaram dinheiro ao país
para que este pudesse pagar ao universo de credores que tinha, até não ter mais
credores senão estes dois.
Haver ou não um segundo
resgate depende da vontade (e da necessidade) de os credores que ainda restam
precisarem dele. Se decidirem que querem receber tudo até ao fim, nos termos
afixados e a tempo e horas, obrigarão Portugal e engolir um segundo resgate.
Mas se entenderem que o BCE pode continuar a emprestar dinheiro ao país à
medida que este vai pagando aos credores, não haverá segundo resgate, pelo
menos com esse nome. Uma coisa é certa: Quanto mais tarde, melhor será para os
credores. Quanto mais tarde, mais credores terão sido pagos com o dinheiro da
Troika e menos sobram à espera da sua vez de receber. Quanto mais tarde o
governo podre do PSD-CDS cair, quanto mais tarde houver eleições, melhor para
os credores. O governo não cai porque está numa corrida contra o tempo e a
favor dos credores.
Torna-se, por isso,
imperioso que este governa caia o quanto antes. Mas a sua queda, por si só, não
basta. É necessário impedir o segundo resgate, tenha ele o nome que tiver, e
para isso só existem duas soluções: a moratória, como vimos defendendo num outro
escrito, para a qual o tempo já está a escassear, ou a reestruturação pura e
simples da dívida, com as consequências adversas, porém inevitáveis que esta
medida acarreta. Negar eleições com o argumento de que seria pior para
Portugal, que seria criar um “foco de instabilidade” é uma falácia ridícula. O
que querem, sabemos nós bem: Ganhar tempo e ter a certeza de que o plano será
cumprido até ao fim. Cabe a nós, portugueses, como aconteceu em 1383-85, como
aconteceu em 1640-41, como aconteceu em 1808-10, a última palavra: Resgatar Portugal.